«Neymar vai ganhar mais numa hora do que um jornalista com duas décadas de carreira num ano inteiro. É uma das conclusões que se pode tirar da tabela salarial do contrato coletivo de trabalho que o Sindicato dos Jornalistas revelou há dias, após oito anos de negociações. Diga lá, ilustre leitor, se não valeu a pena a espera: um jornalista com 10 anos de carreira terá um salário — base — a começar nos €1095; com 20 anos de carreira, €1328; com 40 anos de carreira, €2051. O novo valor de entrada na profissão passa a ser €903 e é apontado pela estrutura sindical como “um marco”. Só se for o marco alemão em 1923, pois não permite adquirir bens essenciais.
A primeira reação à tabela seria, naturalmente, “com sindicatos destes, quem é que precisa de patrões”, mas o mais deprimente é que o novo acordo representa efetivamente um avanço. Segundo um documento online em que profissionais da área partilharam anonimamente os seus vencimentos, há jornalistas com duas décadas de atividade a auferirem valores pouco mais altos do que o salário mínimo.
“Jovem, vem ser jornalista! Prometemos uma vida de constante pressão e responsabilidade. Em troca, oferecemos o salário de um trabalho de verão para adolescentes. Anda! Vem cobrir congressos partidários que acabam às quatro da manhã, momento em que poderás finalmente ingerir uma refeição encomendada no UberEats, entregue por um estafeta que ganha mais do que tu.” É, sem dúvida, uma carreira apelativa.
Há uma dúzia de cursos superiores de Jornalismo e Comunicação Social em Portugal. Seria interessante saber quantos dos formados vão efetivamente trabalhar na área. E, desses, quantos é que nela permanecem mais do que o tempo necessário para concluir que é um sector sem futuro. É que há toda uma geração de jovens que entraram em licenciaturas de Jornalismo convencidos de que chegariam à secção de internacional na “The Spectator”. Hoje são “colaboradores” no Departamento de Relações Públicas do ginásio Kalorias.
Desde que os jornais passaram a vender menos em banca e a dedicarem-se ao online, os aumentos salariais são praticamente inexistentes, mas um redator passou a ter de ser jornalista, videógrafo, gestor de redes sociais, especialista em SEO, blogger, podcaster, youtuber e tiktoker.
Simultaneamente, um jornalista precisa de saber quem é a ministra do Ambiente, estar a par das regras da utilização da vírgula de Oxford e dominar a pronúncia dos apelidos Aursnes, Gyökeres, Hjulmand, Schjelderup. Paradoxalmente, o declínio do jornalismo analógico tornou os profissionais da área em máquinas de escrever. Já não usam Remingtons, mas martelam furiosamente teclas em contrarrelógio para que o órgão para o qual trabalham seja o primeiro a revelar na homepage que o Marcelo deglutiu um gelado. Viver pelo clique, morrer pelo clique.
O estado atual do jornalismo representa bem a ideia de que a nova geração viverá uma vida mais precária do que a anterior. Jornalista nunca foi uma profissão que prometesse riqueza, mas, nos anos 90, o surgimento de novos e vigorosos meios de comunicação possibilitou salários justos e condições de trabalho atrativas. Na altura, ser jornalista era não só relativamente prestigiante como viável. Hoje, ser jornalista é mal pago e, frequentemente, malvisto. É difícil pensar numa função dentro dos media a que o público atualmente dê crédito. Talvez a de autor dos trocadilhos dos oráculos da CMTV.
Sim, já sei, já sei. A horda do “jornalixo” dirá que é bem-feita, que os jornais e os jornalistas ganham mais do que merecem, que foram subjugados à agenda globalista / capitalista / comunista / benfiquista / alfarrabista. Os jornais e os jornalistas são imperfeitos, mas sobretudo são “vendidos” quando noticiam coisas que não nos dão jeito e “corajosos” quando noticiam coisas que nos dão jeito. Agora, julgo que não é polémico afirmar que quem tem em mãos a responsabilidade do escrutínio deve ter direito a um salário digno. Especialmente quando o universo da informação é dominado por indivíduos como Elon Musk ou Mark Zuckerberg — homens adultos que, neste momento, estão a agendar um evento em que é suposto que andem literalmente à porrada.
Dir-me-ão, “Manuel, apresentaste um ou outro ponto interessante, mas não faz qualquer sentido que, no início do texto, tenhas comparado a situação dos jornalistas com a do jogador profissional de futebol Neymar”. Discordo, respeitável leitor. Também já houve jornalistas a acabar a carreira na Arábia Saudita.»
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