«Não devemos analisar a descrença dos povos na democracia pelo crescimento de forças antidemocráticas. Isso é a consequência extrema. É nas posições consensuais e aparentemente neutras que o desconforto se expressa. Os apupos a Gouveia e Melo retrataram uma margem de chalupas ensandecidos por excesso de exposição às redes sociais. Os aplausos, uns dias depois, foram mais significativos. Eles resultam de uma vacinação bem sucedida, obviamente. E os aplausos a quem a coordenou não podiam ser mais merecidos. Mas alguém imagina que seriam dirigidos assim, de forma espontânea, à passagem de uma ministra da Saúde, a quem a maioria (segundo as sondagens) até reconhece um bom trabalho? A reação corajosa do vice-almirante à horda de imbecis que o insultou também explica esta reação. Mas qual seria o tratamento mediático de ato semelhante vindo de um político? Não seria a coragem transformada em arrogância? Ainda reconhecemos a políticos o direito de usar assim a sua autoridade?
É reconhecida a Gouveia e Melo uma autoridade extraordinária. Essa autoridade é-lhe dada pelos bons resultados. Mas a parte extraordinária da sua autoridade vem da farda. Por ela, que não se sujou na lama política, apesar de sabermos como é romântico esse olhar sobre as altas patentes militares, dar ao cargo um estatuto de missão. Apesar de haver corrupção entre os militares (todos nos lembramos de Tancos), a opacidade das Forças Armadas ainda lhes garante, como aos magistrados, as ilusões que o tempo dos “grandes estadistas” oferecia à política: não sabíamos das pequenezas que a grandeza escondia. As pessoas só se autorizaram ao merecido aplauso porque aquele homem não era um político. Sentiram-se confortáveis com a ideia de que podia ser consensual.
O problema não é o mérito reconhecido ao trabalho de Gouveia e Melo. É a necessidade de muitos em construir um herói muito para lá das suas próprias responsabilidades num processo que correu bem, antes de tudo, por condições prévias favoráveis: um SNS melhor do que o pintam, vacinação em ano de autárquicas com empenhamento das câmaras e adesão popular num país que, graças a um passado recente de miséria económica sanitária, ainda tem uma invejável confiança nas vacinas. E é isso que explica porque Portugal era, quando Francisco Ramos se demitiu, o quinto país da UE com mais primeiras tomas, proporcionalmente. Se ele era tão incompetente como alguns dizem, então nós somos mesmo extraordinários.
Não estão em causa as inquestionáveis qualidades de Gouveia e Melo. Está em causa uma sociedade que deixou de ser capaz de olhar para o que ela própria construiu em democracia com respeito e admiração. E tem de atribuir toda a razão do sucesso, em exclusivo, a um salvador de um país “que não se governa nem se deixa governar”.
Temos um SNS muito melhor do que a nossa condição económica e social justificaria. Temos um poder local em que participam centenas de milhares de cidadãos e que mudou este país radicalmente. Os dois tiveram um papel absolutamente determinante no sucesso da vacinação. Mas alguma coisa nos impede de exibir por estas instituições, construídas por nós, um orgulho semelhante ao que entregamos às glórias de passados longínquos ou a figuras sebastiânicas, sejam boas ou más. O nosso desporto é explicar o que “só neste país” funciona mal. E retirar-nos a nós, como entidade coletiva, os méritos das nossas vitórias. Como povo, continuamos, meio século depois da instauração da democracia, a colocar-nos no papel subalterno de quem precisa de um pai protetor. E é nesse papel que a direita descendente do autoritarismo português nos quer.
Uma parte resulta de uma campanha ideológica bem sucedida contra os serviços do Estado. Mas outra resulta de subdesenvolvimento democrático que, para além encontrar mais autoridade numa farda ou numa beca (como no Brasil) do que naqueles que elegemos, tem mais facilidade em prestar tributo a homens providenciais do que a instituições públicas.
O facto de haver tabloides e alguma direita desesperada que andou a especular sobre a possibilidade de o vice-almirante vir a ser candidato à Presidência, como se um chefe de Estado militar fosse imaginável num país europeu do século XXI, é a confissão desta automenorização cívica. E é uma tentativa politiqueira de eclipsar o Governo do sucesso da vacinação, claro.
O vice-almirante fechou exemplarmente e com um assinalável poder de síntese a campanha absurda de quem o quis transformar no que ele não é nem quer ser: “Qualquer ser que apareça como o salvador da pátria é mau para a democracia, porque a democracia salva-se em conjunto com todos os atores do sistema democrático. Não é uma personagem que salva a democracia porque isso é outra coisa. Eu não quero ser essa pessoa.” Não é habitual um militar dar lições de democracia a jornalistas e políticos. Mas também não é a primeira vez na nossa história.»
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