26.6.24

A França como modelo do que pode acontecer?

 


«Os franceses votam nos dois próximos domingos em duas voltas das eleições legislativas. O sistema maioritário (em vez de representação proporcional, como em Portugal, só será eleito o candidato ganhador em cada uma das 577 circunscrições em que se divide o país) favorece artificialmente o vencedor e pode permitir maiorias absolutas com pouco mais de um terço dos votos, como pode acontecer desta vez. Basta para tal que o partido ou coligação vencedora ganhe num grande número de circunscrições por pequenas diferenças de votos relativamente aos segundos classificados, cujo partido/coligação não elege ninguém. É por isto que podemos acordar no dia 8 de julho com uma maioria absoluta do bloco de extrema-direita que reúne a ex-Frente Nacional e os restos da velha direita gaullista. Macron e os seus liberais de cassetete em casa e tropas para a Ucrânia já perderam as eleições: a merecidíssima rejeição maciça dos franceses vai eliminar a grande maioria deles logo à 1.ª volta.

A nova versão da antiga Frente Nacional “não é a de um partido de extrema-direita que se acalmou, mas de um partido com um projeto neofascista que se adaptou a um novo contexto” (Ugo Palheta, sociólogo, 18/6/2024). Como o resto da extrema-direita do nosso século. A única força que pode barrar o caminho do poder à versão 2024 do neofascismo francês é a coligação que a esquerda montou corajosamente em pouco tempo e a que deu o nome de Nova Frente Popular, juntando França Insubmissa e PCF com PS e verdes. Face ao fascismo, uma reação antifascista – exatamente como aconteceu em 1936, quando o PCF propôs uma coligação a socialistas e radicais burgueses com quem tinham partilhado praticamente nada ao longo dos anos da Grande Depressão. O sistema eleitoral a isso obrigava – e ele hoje ainda é o mesmo. As evidentes divergências não os impediram de, face à ameaça fascista (a tentativa de golpe de 1934, Hitler e Mussolini no poder), se juntarem em torno de um programa de reformas sociais que mobilizaram os operários franceses no verão de 1936.

O contexto de hoje tem muito de semelhante. Os franceses (e os europeus em geral) levam 25 anos de perda de poder de compra, de empobrecimento (privatizações e cortes nos serviços públicos, congelamento dos salários, recurso compensatório ao crédito; agora inflação sem compensação em aumentos salariais). A UE transformou-se numa fábrica multiplicadora de desigualdade, com um modelo económico que vampiriza o trabalho precário migrante e, ao mesmo tempo, segrega racismo e alimenta "conspiranoias" por todas as partes: trata os migrantes como “inimigos”; atiça o desvario da “ameaça russa” para justificar a corrida aos armamentos (e procurar diretamente o confronto); dá curso legal à islamofobia num contexto de racismo praticamente institucionalizado, cujos slogans passaram das redes sociais neofascistas para a legislação, e que justifica, desde há muito, formas de securitarismo liberticida que Trump, Le Pen ou Meloni nem precisam de agravar quando chegam ao poder, limitando-se a herdá-las dos “liberais” que as impuseram antes delas.

Como é que chegámos até aqui? Tenho tentado responder a esta pergunta desde que escrevo no PÚBLICO, porque há mais de dez anos que o caminho que percorremos vem sempre dar ao mesmo lugar. Desde há 35 anos, quando a social-democracia se juntou ao consenso thatcherista das direitas (privatizar, desregular, precarizar, concentrar riqueza e dizer que a culpa é do “socialismo do passado”), que se quer convencer classes populares e médias empobrecidas que a culpa é delas porque a economia é isto mesmo. E desde então tem sido a caça aos bodes expiatórios. Aos de baixo. Na mesmíssima lógica dos fascismos de há cem anos: os “outros”, as minorias, os migrantes. Os pobres, tratados como parasitas nos restos de um Estado de Bem Estar que não existia em 1930.

Discutir como reverter este caminho não é (nunca foi) uma discussão académica. Como pergunta Ugo Palheta, “teremos de esperar por um movimento neofascista triunfante para levar a sério os processos de fascistização em curso e as organizações que promovem projetos fascistas e fascizantes?” (La nouvelle internationale fasciste, 2022) A resposta tem mesmo de ser dada. Já.»


1 comments:

susskind disse...

Se o problema fossem as injustiças sociais, os eleitores votariam à esquerda. Mas não, deslocaram-se para a extrema-direita. Os franceses não têm quaisquer desculpas ou a mais pequena atenuante para votar nos fascistas. Se o fizerem, fá-lo-ão de forma bem consciente e devem assumir a responsabilidade do que vão fazer. Porque eles sabem perfeitamente o que estão a escolher. A prova é 2002, então 80% votaram Chirac para que não houvesse FN. É a prova de que sabem. Mas, entretanto, aperceberam-se de que os tempos que se aproximam vão ser muito mais duros, não querem abdicar de nada e não querem saber de solidariedade. Os franceses queixam-se o tempo todo e choram muitas lágrimas de crocodilo. Sabem que o "árabe" é o elo mais fraco, e o cálculo é muito simples. Vamos sacar-lhes os benefícios para ficarmos nóscom eles. Além do cálculo ser estúpido, é de uma absoluta miséria moral.

Para que se tenha consciência da situação, o RN foi primeiro em quase todo o país, incluindo sítios onde se vive muito bem, onde há excelentes escolas públicas gratuitas e creches públicas gratuitas, excelente cobertura hospitalar e de médicos de família, onde não há insegurança, onde se pode andar à vontade na rua dia e noite, em suma onde há uma excelente qualidade de vida. Eu vivo numa dessas comunas. Gostava de saber se há muitos lugares no mundo onde se viva melhor. E depois vêm explicar-nos que são os problemas sociais. Está bem, talvez ainda haja quem acredite que o pai Natal existe.

É uma tristeza.