24.6.24

Perante uma mãe, o mais contemporâneo dos homens

 


«Há momentos em que sentimos orgulho do nosso país: saber, por exemplo, que o nosso SNS é pioneiro em tratamento d, e doenças raras, coisa que não advinha quem passa dias a ver notícias na televisão. Noutros, sentimos vergonha: quando uma mãe que fez tudo para salvar as suas filhas é tratada como uma criminosa na Assembleia da República. O “shitshow” a que assistimos na sexta-feira é muito mais do que um episódio. É um tratado sobre o que nos está a acontecer, enquanto comunidade.

É evidente que existe uma forte suspeita de cunha, tendo Nuno Rebelo de Sousa como centro, provavelmente não tão altruísta e desinteressado como se pensa (mesmo que conheça Daniela Martins, tratar-se-á de um contacto muito distante), em que parece ter querido agradar a outros, talvez os tais “amigos de amigos”. Saberemos, mais tarde, quem levou ele para a reunião com Lacerda Sales e que papel teve o gestor de negócios José Magro, próximo de Nuno Rebelo de Sousa, a quem também se dirigia o mail do diretor do Hospital dos Lusíadas, referido na CPI por Joana Mortágua.

É verdade que Daniela Martins não conseguiu explicar o mail saído da sua conta para Nuno Rebelo de Sousa, falando de Lacerda Sales. Todos percebemos que houve um empenho de um ex-assessor do Presidente e uma disponibilidade óbvia da Secretaria de Estado da Saúde para ajudar. E há, por fim, a habitual promiscuidade entre o privado e o público, em que o mesmo médico trabalha para os dois, preparando-se para cobrar a consulta no privado que encaminha para o tratamento que o público pagará.

Tudo mostra que houve cunhas ao mais alto nível e por isso a justiça irá fazer o seu trabalho. Mas há duas coisas que ninguém mostrou: que esta mãe não tinha direito à nacionalidade portuguesa e que estas crianças não tinham direito ao tratamento no momento em que o receberam. Do que sabemos, tudo aconteceu como aconteceria se Daniela Martins se tivesse apresentado numas urgências e seguido o caminho inevitável perante a excecionalidade daquela doença, o que diz bem do nosso SNS. Talvez tenha havido demasiada gente, a começar por Nuno Rebelo de Sousa, a querer agradar a alguém, pondo-se em bicos de pés.

Investigar isto é trabalho mais do que legitimo para a justiça e para o jornalismo. Tem uma dimensão de interesse público. Não tem é dignidade política para uma comissão de inquérito parlamentar. Ao contrário das que se concentraram na crise bancária ou a que acabou de ser criada para escrutinar anos de gestões da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em que se identificam problemas estruturais para oferecer ao poder político informação que ajude a mudar o que está errado. Ainda por cima, funcionando em paralelo com a justiça, esta CPI será sempre pouco eficaz.

As CPI não servem para investigar escândalos particulares, mesmo que sejam ótimos para o voyeurismo que enche tardes nas televisões. Esta CPI está para o parlamento como o jornalismo tablóide está para o jornalismo: é um subproduto degradante. O único objetivo político é embaraçar o Presidente (que o Parlamento não escrutina), a que agora se quis acrescentar o primeiro-ministro, com a desculpa de que o caminho burocrático e comum dos mails passou, para chegar ao Ministério da Saúde, pelo seu chefe de gabinete.

A HUMILHAÇÃO DE UMA MÃE

Imposto potestativamente pelo Chega e presidido por ele, o que era uma CPI sensível, por mexer no mais íntimo da vida de uma família, passou a ser pornográfica. A participação de uma mãe que fez tudo o que todos nós faríamos para salvar a vida das suas filhas começou mal. Não havia qualquer razão para Daniela Martins não ter feito o seu depoimento à distância, resguardando-se daquela pressão, não se afastando das filhas e poupando dinheiro ao Parlamento (seguindo a lógica do Chega, seria interessante saber quando custará aos contribuintes todo o circo à volta desta CPI). Só que o espetáculo televisivo teria sido mais pobre.

A confirmação disso ser tudo o que interessava a Ventura veio no momento em que o advogado ameaçou usar o direito daquela CPI passar a funcionar à porta fechada, pondo fim ao show montado por Ventura às custas da humilhação pública de uma mãe sofrida. Só aí o líder do Chega recuou na vontade de passar um vídeo que todos os deputados e o país já tinham visto e que a própria Daniela referira, explicara e tentara justificar na sua declaração inicial. Para além de cometer uma ilegalidade, exibindo os rostos das crianças, o contributo para o esclarecimento seria nulo. O objetivo, para além de humilhar alguém que não estava ali para ser julgada, era dar mais cor e luz a um espetáculo grotesco.

Não sou ingénuo. Desde que há canais de televisão disponíveis para as transmitir em direto, as comissões de inquérito parlamentar passaram a ter uma forte componente performativa. Aconteceu com toda a política. Mas, perante uma mãe de crianças com uma atrofia muscular espinhal, esperava-se que isso fosse temperado por mínimos de humanidade. O problema é que ausência de empatia é estruturante da cultura política em que Ventura se filia. Quem vive de alimentar o ódio dificilmente trava perante o sofrimento concreto.

DA CUNHA QUOTIDIANA

André Ventura não agiganta uma vontade de mudança, agiganta a mesquinhez que todos conhecemos do escritório, da reunião de condomínio, dos divórcios, das partilhas. Liberta o lado negro das pessoas para uso político. Neste caso, o rastilho é o legítimo incómodo com a cunha quotidiana, que evidencia a desigualdade que favorece, no acesso a serviços que são de todos, quem tem melhor rede de contactos. Mas esse incómodo não chega a ser uma indignação moral, de tal forma a cunha é usada por quase todos os portugueses em assuntos muitíssimo menos importantes do que este.

Se há coisa que este caso vai mostrando é que a disposição para abrir portas que eram de uso público serviram mais para os supostos facilitadores do que para a mãe que lá chegaria de forma normal. O que diz bem de como o desvio de percepção do que é o SNS também afeta os supostos facilitadores, habituados ao privilégio.

E há, claro, uma pitada de xenofobia que se confunde com o natural incómodo perante o turismo médico que põe em causa a sustentabilidade do sistema (o mesmo problema de fundo que se põe, na realidade, com a formação de quadros em Portugal para irem trabalhar para países ricos). Uma xenofobia que se indigna com uma lusobrasileira, mas aceita se ele vier de emigrantes que não pagam impostos em Portugal. Daniela Martins é portuguesa à luz da nossa lei e isso não está em debate. No entanto, parte da indignação do médico que espoletou este caso foi com a consequência da lei da nacionalidade, que nunca lhe diria respeito. Algum dos médicos envolvidos acha que aquele tratamento não era indicado para aquelas meninas? Alguém deixou de o receber ou recebeu mais tarde por causa delas?

Esperava, de qualquer das formas, que a proximidade emocional de muitos pais e mães àquele caso travasse a desumanidade de Ventura, durante a audição de Daniela Martins. Quanto mais não fosse, por puro pragmatismo: as pessoas podiam reagir mal à desumana humilhação daquela mãe. Não travou André Ventura e ele esteve certo na opção e eu errado na presunção.

UM HOMEM CONTEMPORÂNEO

Há, em Ventura, um desvio típico dos sociopatas. Ele consegue ir onde outros param. Não por ser mais corajoso (teme todos os que têm poder) ou mais esperto do que os outros, mas porque foi despojado dos mecanismos emocionais que nos travam perante a crueldade. Estes são os homens realmente perigosos. Não precisam de ser violentos e até podem ser muito simpáticos. Mas são, e provavelmente é isso que Ventura será, sociopatas. Se forem ver o canal de YouTube do Chega, verão como o partido tratou esta audição e percebem como Ventura e os seus companheiros não viram, naquela mãe, o mesmo que quase todos vimos. Viram uma adversária política como qualquer outra, pronta para ser arrasada.

Porque digo que Ventura tem razão e eu não? Porque ele sabe que o seu crescimento político depende do mesmo que dependeu o crescimento das correntes ideológicas de que é próximo: da apatia perante o sofrimento do outro. Não é da raiva que a extrema-direita se alimenta. É do egoísmo desumanizador. Aquele que as grandes ideologias usavam em nome de um “bem maior”, de um novo devir, mas que esta nova direita, que casa o autoritarismo neofascista com o individualismo neoliberal, usa em nome do ressentimento individual.

Para neutralizar a empatia não faria sentido, para além de umas palavras iniciais de circunstância, Ventura tratar aquela mãe com humanidade. Dizemos que a extrema-direita quer degradar o parlamento para degradar a democracia. É mais e menos do que isso. Degrada a humanidade para degradar a convivência social. Há uma diferença entre o assalto dos militares chilenos ao palácio de La Moneda para derrubar Allende e a invasão do Capitólio, em Washington, ou do Congresso, em Brasília, pela turba. Há uma diferença entre a ordem da repressão militar e a distopia daquelas imagens, onde “patriotas” defecam em salas de deputados. A desordem que estes novos políticos procuram não é política, é moral.

Isto pode não ser assim tão diferente da baderna criada pelas SA antes da subida de Hitler ao poder – alimentar a desordem para propor a ordem. Ou talvez seja mais profundo e novo do que isso – esta extrema-direita não propõe uma nova sociedade, anuncia uma sociedade que já chegou. A que podemos observar diariamente nas redes sociais, onde foram apagadas todas as regras de convivência. Este é o mundo novo, onde a empatia foi abolida e, descorporizados e anonimizados, nos vamos transformando todos em sociopatas. Talvez Ventura seja apenas o mais contemporâneo dos homens.»


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