8.5.22

Assédio, medo e boato na aldeia global

 


«O manto de silêncio que cobre determinados crimes é difícil de romper, mesmo quando parece aceso o debate sobre eles na praça pública. A torrente de notícias sobre os casos de assédio sexual nas universidades não tem paralelo ao nível das denúncias, acabando por haver uma desproporção entre a proliferação de canais, plataformas e relatos anónimos e o défice de inquéritos criminais.

São múltiplos os fatores que o explicam, desde as relações de poder que sempre enformam situações de assédio à existência de fatores culturais que levam a uma autoculpabilização da vítima (que alguma coisa terá feito para mostrar que está disponível, como continuamos a ouvir dizer, em jeito de comentário a casos denunciados). Em vários momentos pareceu antever-se, em atitudes públicas de denúncia, uma espécie de #metoo à portuguesa, mas continuamos com a perceção de que o medo acaba sempre por se sobrepor à tentativa de mudança.

O medo da exposição é particularmente relevante num tempo em que um vídeo, um áudio ou uma simples mensagem que caiam em mãos erradas facilmente acabam ampliados por via tecnológica. Se falar de experiências íntimas e perturbadoras já é, só por si, difícil, o problema ganha outra escala quando se sabe que um testemunho pode acabar lido por milhares de pessoas, que sobre ele comentam, ajuízam e fazem autênticos julgamentos sumários. Isto já para não falar do risco de as próprias vítimas acabarem envolvidas em narrativas ficcionadas, boatos e tantas outras consequências em que as redes são pródigas.

Na era da globalização, voltámos ao espírito mesquinho dos boatos típicos dos meios sociais mais pequeninos (em todos os sentidos do termo). Discorre-se muito, mas há défice de debate, em contraponto com o vício da crítica gratuita e da ofensa pessoal. A liberdade de expressão que Elon Musk tanto defende para o Twitter não é livre, porque a liberdade pressupõe um conjunto de outros valores que a consubstanciam. Na aldeia, o boato tocava e minava a vida dos vizinhos, mas ficava-se entre eles. Na aldeia global, percorre milhares de quilómetros. E tem um efeito de contaminação que corrói todo o espaço público.»

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