11.5.22

Aborto: o que é escolha da mulher não é falha do médico. A liberdade não se penaliza

 


«Os médicos de família e elementos das suas equipas podem vir a ser avaliados pelo número de interrupções voluntárias da gravidez (IVG) realizadas pelas utentes que estão nas suas listas. Isto resultaria da introdução de novos critérios de avaliação para a remuneração variável dos profissionais das Unidades de Saúde Familiar modelo B (USF-B). Estou convencido que os autores desta proposta (e a ministra) não foram motivados por qualquer perseguição às mulheres. Mas esta proposta absurda resulta de um equívoco sobre o que quer dizer “escolha”.

É óbvio que o recurso à IVG tem efeitos negativos para a saúde física e psicológica da mulher. Tinha muito maiores, quando era clandestino e inseguro. Mas continua a ter. O mesmo se aplica a muitos outros atos médicos. O erro é vê-la como um indicador válido de uma falha prévia. E esse foi o argumento da ministra: se a mulher aborta é porque falhou o planeamento familiar. E os médicos que conseguem que as suas pacientes tenham o planeamento familiar eficaz devem ser premiados. Não vou debater a perversidade destas metas, que tratam os pacientes como elementos passivos da ação dos médicos. É o sistema que existe. O erro é mais infantil do que isso.

A ideia é que o número de abortos mede a capacidade do médico, por via da promoção do planeamento familiar, evitar gravidezes indesejadas. Só que o número de gravidezes indesejadas não se mede pelo número de abortos, mas pelo número de gravidezes indesejadas. Depois da gravidez indesejada, umas mulheres decidem levar a gravidez até ao fim, outras decidem interrompê-la. Como não mede as gravidezes indesejadas, apenas medirá a escolha das mulheres. E a única influência que o médico pode ter nessa escolha é interferir nela. Seja convencendo a mulher a não abortar, seja não facilitando o acesso aos serviços. Imagino que não fosse esta a vontade de quem pensou neste critério, mas é o único efeito que pode ter. Ou não tem efeito nenhum, o que só pode levar à sua exclusão.

Suponho que a generalidade dos médicos respeitará, mesmo assim, a decisão da mulher. Mas a verdade é que esta proposta os coloca, como bem disse Manuela Tavares, da UMAR, num conflito de interesses. Respeitar as mulheres é trabalhar para uma remuneração menos simpática.

A IVG é um direito reprodutivo de todas as mulheres. Ao médico, não cabe nem incentivar, nem dissuadir a mulher de o fazer. Cabe-lhe dar toda a informação necessária. Como o aborto não é uma coisa que acontece à mulher, mas uma escolha, não pode, por natureza, servir para avaliar o seu médico.

A legalização da IVG teve como efeito um aumento inicial do número de abortos e uma redução acentuada a partir de 2011, seguindo assim o padrão que sempre se disse que seguiria. Porque é o que acontece em quase todo o lado. Porque depois do impacto de tornar visível e acessível o que era invisível e clandestino, acompanha essa escolha com a promoção da saúde, incluindo mais mulheres no sistema. Mas a escolha está e continuará a lá estar. Esta proposta ignora isso mesmo: que há mesmo uma escolha. E que ela resulta da vontade da mulher, em que o médico não deve nem pode interferir.

A proposta limita-se a reavivar polémicas que estavam resolvidas. No debate parlamentar em que a ministra da Saúde não conseguiu defender o indefensável, disse, visivelmente irritada: “Estamos em 2022. Não é uma discussão para o nosso país, não é uma discussão para este Governo.” Então que se encerre, retirando da penalização do médico o que é escolha da mulher.»

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