2.8.21

Fraternidade, liberdade, igualdade



 

«Numa recente peça de reportagem da Euronews, um professor universitário francês, manifestante antivacinas, expõe assim o seu caso: “Sou contra as vacinas por razões médicas — não as considero nem seguras nem eficazes — e também por razões políticas, porque nos estão a ser impostas. Sendo contra a vacina, só posso ser contra a vacinação obrigatória.” Tem a sua lógica, este homem quer ser livre de desconfiar e de desobedecer e, em última análise, age de acordo com o mote, Liberdade, igualdade, fraternidade, em que a liberdade surge — não por acaso — escrita em primeiro lugar.

Os franceses amam a liberdade, sabemo-lo bem desde a Revolução Francesa. Mas liberdade para não confiar na produção de conhecimento não parece uma causa iluminista, ou sequer razoável, muito menos durante uma pandemia. Outro argumento ouvido entre os que ainda não se vacinaram é que primeiro vão ver como é que nos corre a nós e depois, com calma, decidem – ou seja, à minha frente vai toda a humanidade, tipo ratos; na eventualidade de correr bem, segue-se então este ser humano, avisado, lúcido e singular que sou eu. Constitucionalmente é-se livre de ter esta posição; as pessoas são livres de se excluírem das equações até que estas apresentem resultados seguros. Mas arriscam-se a que, no plano existencial, essa auto-exclusão possa ser considerada uma falha moral, se não mesmo cobardia, tout court.

A definição de liberdade é um trabalho em processo, mas, de forma simplificada, passa pela possibilidade de se fazer seja o que for, desde que não prejudique os outros. Aqui, duas posições: por um lado, aqueles que consideram que ninguém lhes pode impor uma vacina, porque presumem que isso os vai prejudicar e, por outro, aqueles que pensam que esses outros, ao não se vacinarem, os prejudicam. Se a primeira posição está por verificar, a segunda é já hoje uma certeza.

Este modo de discordar por presunção é inquietante, porque raia o obscurantismo, num momento em que é precisa tanta claridade. Trata-se agora de reunir evidências e agir de acordo, não de fazer suposições, muitas com aspectos risíveis. Coisas do tipo a autoria disto tudo é de Bill Gates; a vacina contém um chip para nos controlar (extraordinária, a capacidade de produzir tantos nanochips em tão pouco tempo); estamos debaixo de um sistema de vigilância implacável com um plano para nos subjugar – nunca se terá produzido tanta e tão má sy-fy.

Por outro lado, talvez as pessoas que não se querem vacinar estejam a fazer uma certa confusão entre liberdade e autonomia, na medida em que agem como se não estivessem enterradas até ao pescoço na tessitura do mundo, como todos estamos. E ainda bem que assim é: vivemos em rede e são extraordinárias as benesses que, em rede, proporcionamos uns aos outros, das infra às superestruturas.

Não creio que as pessoas que se opõem à vacinação vivam fora das redes de conforto que colectivamente criámos, é, aliás, na net que mais expressam o seu devir libertário. Beneficiam de vacinas que contribuíram para a erradicação de inúmeras doenças que mataram antepassados seus, mas desconfiam agora da celeridade do processo. Já me foi dito que “a comunidade científica no início da pandemia foi clara: uma vacina ia levar entre dois a três anos a encontrar, logo estas vacinas, criadas em tão pouco tempo, não são seguras”. Intrigada, pergunto porque é que a comunidade científica do início da pandemia merece mais respeito do que a atual, sendo a mesma. E aí a coisa adensa-se: há interesses diabólicos em curso, eu é que estou a ser naive, avisam-me.

A descoberta de uma vacina em tão curto período de tempo é entendida como uma perigosa precipitação e não como um feito extraordinário. É, aliás, frequente, entre muitas destas pessoas, que o sentido de urgência seja substituído por uma desaceleração em várias frentes: sair do mainstream; amar a natureza e viver de acordo com os seus ciclos; limitar e até proibir o uso do telemóvel; preferir de longe as leis do universo às da política.

Compreende-se que haja quem acredite numa outra ordem das coisas — com o seu quê de adorável —, mas o resultado prático, ainda que involuntário, é o abandono de todos os outros à sua sorte. Corre veloz um rio, cheio de gente vacinada e estas pessoas estão na margem a gritar-nos sobre os perigos da corrente. Teremos de encontrar tempo e energia para lhes gritar de volta, não para que se calem, mas para que se deixem de manias e mergulhem. É na corrente do rio que tudo acontece, até a contracorrente.

No filme de 2017 de Alexander Payne, Downsizing, um cientista norueguês inventou uma forma de encolher pessoas e coisas, numa tentativa de reduzir o impacto humano nos recursos do planeta. Mas esta miniaturização chega tarde, porque um envenenamento de metano compromete seriamente a atmosfera terrestre. A certa altura do filme, Matt Damon, que interpreta Paul, juntamente com Ngoc Lan (Hang Chau), uma invulgar parceira vietnamita, encontram uma comunidade de pessoas com um plano para salvar a espécie humana. Uma das personagens explica que cavaram “um túnel que conduz a um espaço de 1,6 quilómetros dentro da litosfera terrestre, isolado por uma camada dupla de Inconel 625, onde se criou um ecossistema habitável”. O grupo planeia ali permanecer durante cerca de oito mil anos, até que a atmosfera estabilize e a Terra se torne novamente habitável — assegurando assim a sobrevivência da humanidade. Convidados a juntar-se-lhes, Paul e Ngoc Lang discutem. Ele quer refugiar-se no túnel, ela opõe-se veementemente: “Aqui fora é que as pessoas precisam de ajuda, não no estúpido do buraco.”

Não revelarei quem vence a discussão, mas o que Ngoc Lang sugere a Paul é que fiquem cá fora a lutar por soluções comuns. Mais difícil ainda, ela tem a coragem amorosa de apostar na sobrevivência de todos — ainda que possa falhar, ainda que não se encontre uma solução e o envenenamento da atmosfera seja inevitável.

Para esta heroína, a fraternidade vem muito antes da liberdade de salvar o próprio coiro. Assim deveria ser para cada um de nós — e para os franceses, já agora. Enquanto perdemos tempo a bradar por liberdades individuais — enquanto, em vez de nos vacinarmos, entretemos a ideia de cavar túneis privados para lá enfiarmos um grupo de amados e conhecidos —, tudo em nosso redor grita, alto e bom som que, sem um amplo sentido de fraternidade e comunidade, estamos todos feitos — por igual.»

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