«Sobre os crimes sexuais na Igreja Católica já escrevi há poucos meses e um assunto centenário dificilmente precisa de atualização. Mais interessante do que escrevi será seguramente a conversa com António Marujo, um jornalista veterano em temas religiosos que nos explica quão profunda terá de ser a reforma da Igreja para superar as razões sistémicas destes casos. Porque a questão não são apenas ou especialmente os abusos. É a forma como a autoridade clerical protegeu a impunidade dos abusadores, por se ter habituado a ser um Estado para lá do Estado, com o poder de condenar ou absolver a casta clerical, para lá da justiça.
Laborinho Lúcio, membro da Comissão Independente que está a receber denúncias, defendeu que, se houver insistência em ocultar a própria ocultação, os abusos passam a ser da Igreja: “ou a Igreja se abre completamente e os abusos são na igreja ou se fecha e os abusos passam a ser da Igreja”. Compreendo a ideia, mas vem fora de tempo. Porque o escândalo nunca foi haver casos de abuso de menores, que podem acontecer em qualquer instituição, foram décadas de encobrimento ativo até ao topo da hierarquia. E esses já aconteceram. Os abusos já são da Igreja. O máximo que pode tentar é que não continuem a ser.
Nunca é tarde para a “redenção”. Como defendeu o padre Thomas Reese, a Igreja pode e deve ser voluntariamente implacável consigo mesma, investigando tudo, punindo os culpados, indemnizando as vítimas e enviando para a justiça o que ainda pode ser julgado. É um exercício difícil, mas o único que não a deixará décadas enfiada na sua maior crise desde a reforma protestante. Há resistências. Muitas, porque é de poder que falamos. Em Portugal, a sucessivas declarações do bispo do Porto, que dá tanta importância ao tema que ignora que o abuso sexual de menores é crime público, são exemplo dessas resistências. Aliás, resiste desde o início a qualquer comissão que investigue, tratando estes casos como uma queda de um meteorito.
Outras resistências serão menos conscientes e desejam apenas enfiar a cabeça debaixo da areia. É o caso de Marcelo Rebelo de Sousa. Há meses que tropeça como bêbado neste assunto. Desde declarações de confiança no presidente da Conferência Episcopal a telefonemas a quem está a ser investigado, não há disparate que já não tenha feito neste tema. Agora veio dizer isto: “Não há limite de tempo para estas queixas, há queixas que vêm de pessoas de 90 ou 80 anos e que fazem denúncias relativamente ao que sofreram há 60 ou 70 anos. Portanto, estamos perante um universo de pessoas que se relacionam com a igreja católica de milhões de jovens ou muitas centenas de milhares de jovens. Haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado porque noutros países com horizontes mais pequenos houve milhares de casos.”
Marcelo saberá que estes 400 estão muitíssimo longe de corresponder ao universo de abusados num processo que vai longo noutros países e ainda só agora começou por cá. Estes são os que encontraram força para a denúncia, que deveriam merecer um especial respeito pela coragem que tiveram. Mas nem é essa a questão. Neste caso, a questão é o papel que Marcelo Rebelo de Sousa acha que tem na sociedade portuguesa. Ainda se julga, é evidente, Comentador Geral da República.
A criação da Comissão Independente corresponde a um esforço tímido, a um primeiro passo, para, na Igreja portuguesa, se fazer o que Thomas Reese defendeu à escala global. Será sempre traumático para uma instituição milenar que já teve um poder imenso. A Igreja, que tem, mesmo para quem não é católico, um lugar relevante na sociedade portuguesa, precisa de pressão, por um lado, e de apoio, por outro, para o esforço que tem de fazer. Marcelo está a cumprir o pior papel possível.
Antes de ser católico, Marcelo Rebelo de Sousa é Presidente de uma república laica que inclui cidadãos de outras religiões, de outras igrejas, ou sem religião ou igreja. E não está a comentar um tema interno à Igreja, porque envolve crimes graves. Por mais que lhe custe, tem de deixar de comportar, no exercício das suas funções, como quem fala de dentro da sua Igreja. Não estamos, felizmente, no Brasil, onde um Presidente diz que Deus está acima de todos. Muito menos estarão os bispos. Foi como Presidente da República que Marcelo insultou o sofrimento das vítimas ao desvaloriza-lo com um tratamento estatístico (ainda por cima absurdo). E foi em nosso nome.
Mas mesmo como católico, Marcelo falha. Não dá o seu contributo para o esforço que a Igreja tem de fazer. Aquelas declarações são o inverso do que os membros da Comissão Independente disseram em conferência de imprensa. Como católico, e não era nessa qualidade que falava à comunicação social, Marcelo Rebelo de Sousa colocou-se ao lado dos setores da Igreja que resistem ao que o Papa pede que seja feito, pondo-se numa posição defensiva quando, sendo parte da Igreja, deveria ser ainda mais exigente do que os que estão de fora.
Perante as reações indignadas e unânimes, Marcelo tentou desdizer o que tinha dito. Numa nota, os números que não eram particularmente elevados seriam afinal seguramente superiores. Para a RTP, o que nos punha melhor do que outros países afinal deveriam ser muito mais. E, por fim, para a SIC, reconhecia que tinha sido mal compreendido, mas não percebia porquê. Talvez porque o que disse depois foi o oposto do que disse antes ou, se não foi, o que disse antes não tinha pés nem cabeça, do ponto de vista lógico. Se só estava a dizer que imagina que havia muitos casos, mas houve poucas denúncias, a comparação com os outros países queria dizer exatamente o quê?
Marcelo Rebelo de Sousa percebeu que fez asneira? Ótimo. Só falta perceber que, sobre este tema, não tem feito outra coisa. E desajudado muito, com isso.»
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