15.8.22

A tola fidelidade ao SNS

 


«Acredito que nos deixámos manietar. Distraídos do que nos rodeava, demasiado absortos na nossa bolha de altruísmo e sem tempo para dedicar à lana caprina. Permitimos que a nossa célebre vocação fosse despudoradamente instrumentalizada, enquanto vícios menos altruístas se instalavam. E que o nosso atrasado protesto seja agora subvertido, acusando-nos de mercenarismo e encenando fait-divers que desviam a opinião pública dos gravíssimos problemas estruturais que nos farão ruir. Mas a nossa atual indignação materializa talvez a vergonha que sentimos de nós mesmos, da nossa própria passividade e resignação, que nos fizeram chegar a tal ponto.

Éramos garotos precoces, mas já comprometidos, quando escutámos o coração e seguimos este rumo. Longe de anteciparmos o perpétuo boicote à nossa serenidade. Somos hoje reféns dessa decisão, corroídos pela frustração e dobrados sobre nós mesmos, com dores que talvez não passem de somatizações pelo cansaço e pelos conflitos que mantemos connosco. Deixámo-nos desvalorizar, apesar da excelência do nosso préstimo. E ataca-nos o amor-próprio, este sentimento de vítimas afeiçoadas ao agressor. Aborrece-nos quando a sopa vem fria para a mesa ou quando o crime prescreve, enquanto alguém se desvia, de fininho. Se nós falharmos, talvez a vida de alguém termine. Foi a cruz que escolhemos. Mas se nos tomam por garantida a vocação e nos sugerem resiliência, desconhecendo que ela nos é inata, sentimo-nos profundamente insultados.

Vejo-nos num barco que navega em águas revoltas e cujo barqueiro nos trata como carga. Os que vão tombando são mera comida para peixes. Outrora sagrada, a fidelidade ao SNS é hoje tola e profanada pelo pressionante convite à emigração ou à exclusividade privada. Se a mão que nos sacramentou é a mesma que nos aponta agora a saída, é quase deselegante permanecermos.

Aos colegas que puderam estender toalhas em tempo devido, não pretendemos competir por lugares ao sol. Seria agradável que se juntassem a nós. Como grupo de pares, sejamos solidários e recíprocos. O desabafo dentro de portas faz-nos bem, nas breves pausas para café. Mas alguma porta teremos de abrir. Porque tendemos a espernear um pouco, a arrotar um ou dois impropérios, mas logo corremos a trabalhar mais.

As pessoas merecem saber que quem as trata também adoece. E que a confiança inabalável que em nós depositam, nas horas de angústia apertada, se defrauda nas nossas noites por dormir. Somos médicos e enfermeiros que não descansam e quase não veem as famílias. Autómatos com mau aspeto, que fumam demasiado e se alimentam das máquinas de café. Ao final do dia, dói-nos o corpo e a alma. Os danos colaterais seremos nós, a estabilidade do nosso casamento e dos nossos filhos. Recordo a ingenuidade daqueles anos de suor e lágrimas, alheados do dinheiro enquanto assunto. Sairíamos de casa, pela fresca e bem dormidos, de forma a cuidarmos dos outros. E regressaríamos, pela tardinha, a tempo de cuidar dos nossos. Falemos um pouco sobre o divórcio na classe médica. Conversemos sobre saúde mental.

Cansado e ambivalente, assisto aos longos debates sobre o trabalho extra. Abordemos o descanso e as repercussões da sua falta na nossa estabilidade e desempenho. Na acuidade dos nossos reflexos e decisões que poderão revelar-se determinantes na vida de alguém. As horas de trabalho extra retiram demasiado de nós. Se podemos mudar de vida? As renúncias ao que poderíamos ter sido ditaram-nos o percurso, o investimento na Medicina esvaziou-nos o fôlego. Pessoalmente, a Psiquiatria da Infância e da Adolescência como que me define a identidade. Abandoná-la seria abandonar-me e não posso amputar-me de tal forma. Que não mo faça a doença ou a perda do que tomo por seguro. Porque aí, seguramente, a vida que eu escolhi atraiçoou-me.

Como médico de saúde mental, numa conjuntura de insalubridade e patologia estrutural, sinto-me a soprar contra o vento. Nesta área de entrelace com a sociedade e com a cultura, de fronteiras cada vez mais esbatidas entre o normal e o patológico, comparo-me ao amortecedor do carro velho, que resiste à estrada esburacada. E aceito este papel do pequeno David, agarrado à sua fisga. Sabendo que posso tombar, porque o médico nem tempo tem para ir ao médico. E quando é bruto e mal-humorado, quando chega tarde ou desmarca em cima da hora, não tem gosto em fazê-lo. Talvez se debata com íntimos conflitos, refém de uma sequência de decisões que o assoberbaram. A família não lhe vale, porque não o vê.

Se estes médicos sucumbirem, sobrarão de nós os que legitimamente se dedicaram à exclusividade privada ou colocaram a sua formação de qualidade ao serviço do mundo, fora de portas. Em troca do proporcional e genuíno reconhecimento que lhes devolveu o amor-próprio e a serenidade.»

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