19.8.22

É preciso Estado neste jogo viciado

 


«Há uns meses, o Parlamento chumbou propostas para revogar os vistos gold. O PS disse que é tempo de avaliação. Enquanto se avalia o que já sabemos, aconselho a consulta do último relatório do INE: mais de 10% das casas compradas em Portugal, em valor, são adquiridas por cidadãos estrangeiros — já lá vou —, muitos por causa de vistos gold e vantagens fiscais. Estes valores serão muito mais elevados em Lisboa, Porto e no Algarve. O preço médio de uma casa na Área Metropolitana de Lisboa aumentou 144% entre 2000 e 2019. No Grande Porto duplicou. E só nos últimos três anos cresceu ainda mais 30% no distrito de Lisboa e quase 40% no do Porto. Quanto ao salário médio, que tem de cobrir estes preços, não chegou a aumentar 50% desde 2000. As casas não são para bolsos portugueses e só os juros baixos, que chegaram ao fim, mitigavam os efeitos da bolha imobiliária. A brutal crise no acesso à habitação tem um efeito transversal. Ajuda à falta de trabalho em sectores como o turismo, com salários que não chegam para o preço absurdo das rendas nas imediações dos principais destinos. Há anos que Lisboa tem falta de professores porque não se consegue viver na capital. O mesmo acontece com polícias, enfermeiros e todo o tipo de profissões. É uma doença que afeta a economia, o rendimento disponível e os serviços públicos. É um problema estrutural que exige soluções estruturais.

A crise não é portuguesa. A elevada liquidez injetada pelo BCE nos últimos anos, sem uma política orçamental que a acompanhasse, levou à deslocação massiva de investimento para o imobiliário, que foi fugindo de uma banca instável e de uma economia estagnada. Tornou-se um investimento financeiro apetecível e as casas fugiram das mãos de quem vivia nas cidades. Mais de 60% dos britânicos de classe média, entre os 25 e os 34 anos, tinham casa própria em 1997. Vinte anos depois, são pouco mais de 20%. No nosso caso, à falta de vontade para regular instrumentos como os vistos gold, Alojamento Local ou benefícios fiscais concedidos a estrangeiros endinheirados, junta-se a falta de habitação pública. Viena, Amesterdão, Estocolmo ou Bruxelas têm entre 25% a mais de 40% de casas geridas por programas sociais. Paris quer chegar a 30% já em 2030. Lisboa e Porto nem chegam aos 10%. No total do país, não passam de 2%. E as dificuldades do anterior executivo da Câmara de Lisboa em assegurar fogos a preços acessíveis faz-me temer pelo sucesso de projetos em dezenas de concelhos com menos massa crítica.

Lisboa e Porto entraram tardiamente nos radares do turismo e, com ele, no mercado imobiliário global. Depois dos vistos gold, a novidade são os nómadas digitais, que, com a experiência da pandemia, perceberam que podem trabalhar de qualquer lugar. O clima ameno, boas praias, segurança, preços baixos para os padrões internacionais e a qualidade dos cuidados de saúde (sim, leu bem) fazem de Portugal, aos olhos da imprensa internacional, a “nova Califórnia” na Europa. Esta semana, a Bloomberg incluiu Lisboa entre os seis novos “destinos hipster” para expatriados. A imprensa parola rejubila. Mas um nómada digital californiano alegrava-se, numa reportagem do “LA Times”, com o facto de ser possível alugar um apartamento em Alfama por 2100 euros, metade do que pagava em São Francisco. Quase o dobro do salário médio nacional. Com o que se recebe aqui não teremos onde viver.

O meu problema não são os estrangeiros, como imaginam. São bem-vindos em cidades que se querem do mundo. O problema é a disparidade de tratamento fiscal. Temos portugueses com salários baixos e sem acesso aos benefícios fiscais reservados para os estrangeiros qualificados a competir pelo acesso a um teto onde viver. E o problema é a ausência de políticas públicas que contrabalancem a pressão do mercado global. Isto é um jogo viciado. Dizê-lo não é xenofobia, como acusou um deputado do IL em defesa da desregulação de tudo, porque o Estado não deve subsidiar o luxo de viver em Lisboa ou no Porto e o mercado pode tratar da estratificação social do território, até termos cidades sem trabalhadores com salários médios, por isso disfuncionais. O problema é estarmos a aquecer uma panela de pressão de um ressentimento social que alimentará a xenofobia.

A solução passa por mais Estado, essa heresia para os dogmas da moda. Seja para a regulação de instrumentos de atração de compradores, quando temos de desinchar a bolha; seja para o aumento da oferta pública de habitação a preços acessíveis. O que fazem tantos países europeus, despreocupados com o estigma das políticas “socialistas”. Mas não está fácil vender por cá o que é óbvio em tanto lado. Basta ter ouvido Carlos Moedas, num encontro de uma das maiores promotoras imobiliárias de luxo a confessar-se “humilde perante as dificuldades que elas sofrem” em Lisboa, para perceber porque se opõe à regulação do Alojamento Local, que considera uma limitação à “liberdade de empreender”. É deixar empreender sem limites até que ninguém que aqui trabalhe e pague impostos aqui possa viver. Nem os que servem à mesa hipster. Seremos um soalheiro cartão postal. Morto.»

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