15.6.22

Bem prega Frei Costa, mal se queixa Frei Saraiva

 


«Perante uma plateia de jovens, António Costa fez um apelo: que o salário médio crescesse 20% nos próximos quatro anos. Como não explicou se falava do rendimento real, não sei se grande parte disso não seria comido pela inflação. Mas é indiferente, porque o apelo, como prova a forma descuidada em que foi feito, não é para levar a sério.

Perante uma inflação prevista no Orçamento de 4%, que já está nos 8%, o Governo impôs um aumento salarial de 0,9% aos funcionários públicos. E não consta que nas empresas de que o Estado ainda é o principal acionista se tencione contrariar esta lógica. Isto corresponde a uma brutal queda do salário real. E se compararmos com as previsões do aumento previsto da produtividade, será a maior perda de peso do trabalho no rendimento nacional deste século. Pior do que no pior ano da troika. Tem razão António Saraiva, da CIP: bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz, não faças o que ele faz.

Fernando Medina e António Costa têm defendido esta brutal perda de rendimentos com o argumento da cautela. Não sabemos o que aí vem. O efeito mimético é óbvio. Se o Estado, com mais informação, adia a decisão de aumentar salários, por que não o fariam os privados? Se este não é o bom momento para garantir que os salários da função pública acompanhem a inflação, deixando os trabalhadores em situações impossíveis – vem aí o aumento das prestações da casa graças à eutanásia económica imposta pelo BCE, que deixarei para outro texto –, também não o é para estes apelos. A diferença é que os apelos saem de graça.

Outro argumento contra o aumento dos salários da função pública é que isso contribuiria para uma espiral inflacionista. Esta inflação tem origem externa e na oferta, não interna e na procura. Usar a redução dos salários reais em Portugal para conter esta inflação é como tentar abater um míssil com uma fisga. O efeito dos aumentos salariais seria marginal numa inflação com origem no aumento do preço dos combustíveis e dos cereais e na rutura logística e de produção chinesas. Mas, se fosse verdadeiro, como raio valeria para a função pública e não para o privado?

ABAIXO DA PRODUTIVIDADE

Os presidentes da CIP e da CCP não reagiram bem. João Vieira Lopes acusou Costa de se comportar como um “sindicalista”, o que, na arqueológica visão de alguns dirigentes associativos dos patrões portugueses, corresponde a um insulto. Noutros países é função respeitada. Aparentemente, está com medo do que a quebra do poder de compra fará às empresas que representa e por isso não quer aumentar salários. Tendo em conta que o poder de compra depende dos salários, é o que se chama ter visão.

António Saraiva criticou a óbvia incoerência de António Costa e explicou que isto não vai lá com manuais de instruções para as empresas e para a economia. Mas faz sentido recordar que, desde 1999, a produtividade aumentou 14% e a remuneração real só aumentou 6%. E se não fosse a pandemia, em que a economia parou, mas os apoios públicos mantiveram os empregos e os salários, a diferença seria ainda maior. Se as contas do Governo para o Orçamento do Estado estivessem certas, estes números passariam, no fim de 2022, para um aumento da produtividade, desde o início do século, de 18% e um aumento da remuneração real de 5%. Ou seja, os trabalhadores não têm sido proporcionalmente beneficiados pelo aumento da produtividade e continuarão a não o ser. Vivem abaixo das suas possibilidades para outros viverem acima.

É preciso dizer que esta discrepância não é um fenómeno exclusivamente nacional. De 1950 a 1970, a produtividade dos EUA cresceu 79% e os salários reais 76%. Muito próximo. De 1980 até 2019, a produtividade cresceu 113% e os salários reais apenas 50%. É por isso que, graças ao desequilíbrio de poder imposto pelo neoliberalismo de Reagan e Thatcher e pela destruição dos sindicatos em que se empenharam (a sindicalização no Reino Unido era de 50% e agora é de 20%, nos EUA era de 25% e agora é de 5%), o homem mais rico do mundo é trinta vezes mais rico do que homem mais rico de 1955. Não é mais engenho, é porque a esmagadora maioria deixou de beneficiar de forma equilibrada do crescimento para que contribui.

Mesmo não sendo este constante afastamento entre o aumento da produtividade e o aumento dos salários reais uma realidade exclusivamente nacional, o que Costa propôs, na sua intervenção inconsequente, não está desfasado da realidade económica portuguesa. Se o peso dos salários no nosso PIB correspondesse aos mesmos 48% do conjunto da riqueza que vigoram em média na UE, o esforço seria proporcionalmente o mesmo, adaptado às nossas capacidades. Não é mais do que aguentamos, é a proporção do que se pratica na Europa aplicada à nossa realidade. Lembram-se da hecatombe anunciada com o aumento do salário mínimo? Não aconteceu.

SEM MAGIA, COM ILUSIONISMO

A inconsequência é que estas coisas não dependem de apelos, mas de políticas. António Saraiva tem a solução mágica num dos países mais desiguais da Europa: pagar menos impostos (os que pagaram os apoios às empresas durante a pandemia). Não houve nenhuma grande reforma fiscal nos últimos anos. Não são os impostos que explicam um rendimento que nunca sobe tanto como a produtividade. Como a nossa carga fiscal está abaixo da média europeia – e o esforço no pagamento de salários também –, é difícil argumentar que é aí que está o problema. O primeiro problema é a perda de poder negocial dos trabalhadores e as leis que subordinam o trabalho, impostas pela troika e ainda em vigor. O segundo tem a ver com a estrutura da nossa economia.

O primeiro problema deve ser o Governo a resolver. E a verdade é que no mesmo momento em que propõe começar um projeto piloto para a semana de trabalho de quatro dias (uma ideia que se fosse para levar a sério seria interessante e que podem conhecer melhor na entrevista que fiz ao economista Pedro Gomes), limpou da Agenda do Trabalho Digno grande parte das propostas que contrariavam a precariedade e reforçavam a contratação coletiva. Como os aumentos salariais dependem da economia e da negociação para partilhar os seus ganhos, Costa não está a fazer nada nesse campo.

Quanto ao segundo problema, é uma pescadinha de rabo na boca. Ela é evidente quando os hoteleiros que cobram, no Algarve ou em Lisboa, tarifas de estadia que não estarão uns 20% ou 30% abaixo das cobradas em cidades como Berlim, se queixam da falta de trabalhadores a quem pagam muitíssimo menos do que se paga na Alemanha. E com péssimas condições de trabalho e preços de habitação incomportáveis (também voltarei ao tema).

As vulnerabilidades da nossa economia têm razões estruturais, históricas e até externas. E é sintomático que a análise sobre a estagnação em que Portugal entrou nos últimos vinte anos se concentre sempre nas pequenas guerrilhas partidárias enquanto se ignora o maior terramoto económico da história recente do país – a adesão a euro. Mas os salários baixos são consequência, mas também causa. Uma economia que se baseia em baixos salários é uma economia que não acrescenta valor. Que não pode aproveitar o investimento feito em formação. Que se tem de concentrar em serviços rentistas, para onde as privatizações dos anos 90 canalizaram o capital). O baixo salário é um mau hábito concorrencial que alimenta maus gestores e más empresas.

O aumento do salário médio não é só um imperativo de justiça social. É um imperativo económico num país que tem um mercado interno raquítico e que nunca poderá competir com a mão de obra (cada vez menos) barata chinesa e precisa de absorver a mão de obra que andou a formar. Um governo decidir que esse objetivo é nacional é mais do que justo. Só não o é para quem gostava que o Estado se limitasse a baixar impostos, distribuir fundos europeus e privatizar os serviços que ele próprio construiu ou empresas apetitosamente monopolistas. Ou a acabar com apoios sociais para que os desempregados que não conseguem emigrar aceitem trabalhar com salários miseráveis.

Para quem acha que os governos ainda servem para alguma coisa, este é um objetivo óbvio. O problema é quando percebemos que, desde 2011, incluindo tempo de Costa, o salário dos funcionários públicos cresceu abaixo dos privados. E que o Estado se dedicou a reduzir, na lei, a capacidade negocial dos sindicatos. Com palavras não se fazem milagres. Mas faz-se ilusionismo: enquanto se baixam salários reais dos funcionários públicos, os do privado sobem na retórica do debate político.»

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