18.6.22

Falácias, erros e o dilema moral sobre a guerra na Ucrânia

 


«Como já há muito poucas coisas que me surpreendem, assisto com mais pena do que furor, a como é possível numa democracia e em liberdade haver boa gente capaz de aceitar tanta falácia, tantas mentiras, tantos erros, e procurar pretextos para aquilo que é um pecado mortal, a acédia, a preguiça, a indiferença na sua pior forma, face ao sofrimento inútil, desnecessário, maléfico dos outros. Usei maléfico intencionalmente, porque, se há mal no mundo, é a violência da morte, da destruição, da fuga, da miséria provocada a quem já estava no limiar da pobreza, por uma invasão brutal, criminosa, sem razões, nem pretextos, da Ucrânia pela Federação Russa de Putin.

Medi todas as palavras: brutal, porque vai muito mais longe das eventuais necessidades militares, é punitiva na sua natureza, para os mais fracos. Criminosa, porque não respeita nem sequer um dos frágeis adquiridos civilizacionais, as leis da guerra. Os dois lados fazem o mesmo, mas, quer se queira quer não, a responsabilidade primeira é do invasor. Sem razões, nem pretextos, porque por muito que se possam acumular razões, e algumas há para a preocupação russa, a resposta é tão desproporcionada, que remete não para essas razões, mas para outras de natureza imperial. Nas democracias devem combater-se essas intenções imperiais de território e riqueza, como se fossem connosco.

Eu sei que escrever o que vou escrever é em grande parte inútil, mas mesmo assim tento, porque o faço para os “outros”, onde estão amigos e companheiros meus. Muitas dessas pessoas são genuinamente altruístas, são capazes de sacrifícios pelos outros, preocupam-se com a miséria e a pobreza, não vivem a sua vida num registo egoísta e individualista, têm os defeitos comuns de toda a gente, mas também tem virtudes menos comuns nos dias de hoje, de dedicação e solidariedade. Podemos criticar muitas das formas políticas que traduzem a sua vida e militância, como podemos criticar a incapacidade de muitos católicos em ultrapassar a caridade por uma consciência social, mas nem por isso deixam de ser, aquilo que uma classificação em desuso, chamava de “pessoas boas”.

Como é possível que não vejam o que se está a passar, porque, por muita manipulação (que há) e por muita espectacularização da dor para garantir audiências, eles sabem que há um enorme sofrimento injusto e injustificável na Ucrânia nestes dias e sabem o que o causa e quem o desencadeou e provocou. Sim, é verdade que na Palestina, no Iémen, em África há idêntico sofrimento, mas fazer amálgamas dissolve a consciência do mal. Deixaram-se prender numa espécie de identidade pelo inimigo, identidade pelo adversário, incapacidade em sair de um mundo político que se indigna com a NATO e acaba por ser indiferente com a Rússia de Putin. Ele há muito poucos defensores explícitos da invasão da Ucrânia, mas há muitos justificadores. É desse esforço de justificação que vou tratar, usando os argumentos do “outro lado”, antes de usar os meus.

As minhas fontes não são discussões nas redes sociais, nem tweets, nem comentários anónimos. São os documentos do PCP, os artigos do Avante! (que mesmo assim evita falar muito da Ucrânia, o que é interessante), os artigos do Abril, Abril, em particular os de José Goulão, os comentários de alguns militares nas televisões, com destaque para a SICN e CNN, e várias outras opiniões de defensores da interpretação essencialmente anti-NATO da guerra. O resultado dessa interpretação é uma equidistância retórica entre a responsabilidade russa e a da NATO e da Ucrânia, contrapondo uma vaga referência à “violação do direito internacional” pela Rússia, com páginas e páginas sobre a esmagadora culpabilidade dos “nazis” ucranianos, da NATO, dos EUA, das indústrias de armamento, da conspiração anticomunista e anti-russa.

Como se trata de adultos, parto do princípio de que eles sabem muito bem o que estão a apoiar, o que estão a defender, o que estão a esconder e onde querem chegar. Vejamos algumas questões:

Começou a “guerra” em 2014?

Sim e não. A “guerra”, se começou em 2014, começou pelo apoio russo à separação do Donbass e pela ocupação da Crimeia, em ambos os casos operações militares com ocupação e anexação do território. Esta é a guerra de 2014. O golpe da Praça Maidan - e repare-se que não coloquei golpe entre aspas -, não é uma guerra, nem serve de pretexto para a guerra actual nem para a de 2014. Os nacionalistas ucranianos, cujo nacionalismo é nos seus extremos protonazi (como aliás o nacionalismo russo, mas não como o nacionalismo francês, por exemplo), não invadiram a Rússia. Vamos chamar guerra à guerra, e guerra é muito mais do que uma “operação militar” (como afirmam os russos), é o que está realmente a acontecer nos dias de hoje.

Manifestar-se pela Paz, mas que “paz”?

Já se realizaram e vão-se realizar várias manifestações com o pretexto da paz. Nos cartazes diz-se “guerra e corrida aos armamentos, não!” Não sei muito bem como interpretar esta palavra de ordem, porque a “guerra” iniciou-se porque houve uma invasão militar de um país pela Rússia e a “corrida aos armamentos” é uma resposta inevitável a essa invasão, não a sua causa. Não deviam nomear a Rússia e dirigir para o invasor a sua condenação em nome da paz? Deve haver um acordo de paz? Sem dúvida, mas desde que esse acordo não implique o benefício do infractor, porque, se é assim, ele favorece a guerra e não a paz. Aquando da guerra do Vietname, identificava-se muito bem os EUA como o agressor, e ninguém esperava que os vietnamitas fizessem um acordo de paz deixando os EUA a ocupar parte do território.

Eu seria o primeiro na manifestação se a paz desejada passasse pela retirada do invasor, pelo pagamento de indemnizações pelas destruições causadas, pela libertação das populações prisioneiras contra a sua vontade na Rússia, pelo julgamento dos crimes de guerra por autoridades independentes, pelo respeito pela soberania ucraniana. E então sim, incluiria nesse acordo, uma considerável autonomia das minorias russófilas na Ucrânia, o seu direito à língua e à cultura, idêntico julgamento dos crimes de guerra ucranianos e a exigência da luta contra a corrupção, a democracia e a liberdade, uma eventual renúncia à entrada na NATO, desmilitarizando as zonas fronteiriças.

Qual foi o maior atentado contra a Paz (com letra grande) nestes dias de guerra?

Foi a ameaça de iniciar uma guerra nuclear feita por Putin e Lavrov, um acto sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. O “se”, em “se estiver em risco uma ameaça existencial para a Rússia”, torna ainda mais grave a afirmação, dita de viva voz (não é manipulação). Isto, sim, justificava enormes manifestações. Como não há tanques americanos às portas de Moscovo, nem mísseis convencionais lançados do Alasca, a interpretação do que é a “ameaça existencial”, ainda por cima num conflito num país terceiro, por parte de Putin, é mais que perigosa porque dá para tudo.

Continuaremos.»

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