13.6.22

A condecoração do enfermeiro Luís

 


«Nada contra o enfermeiro Luís, tudo a favor. Todas as declarações que leio e que lhe são atribuídas parecem de extrema sensatez.

Vejamos: manifestou contentamento pelas palavras de apreço de Boris Johnson a seguir ao seu internamento por infeção com covid-19. É normal e é razoável. Foram elogios ao seu trabalho. As palavras do primeiro-ministro inglês materializam que recebeu um tratamento excepcional.

Manifestou também a sua surpresa porque, logo a seguir ao discurso de agradecimento de Boris Johnson, recebeu um telefonema de Marcelo Rebelo de Sousa. Na verdade essa surpresa só pode ser explicada por viver fora do seu país. Não aconteceu nada de novo. O nosso presidente gosta de marcar presença, é afectuoso e extremamente rápido a fazer o que lhe passa pela cabeça.

Agora, pelo 10 de junho, o enfermeiro Luís Pitarma foi condecorado com a Ordem de Mérito com o grau de Oficial. A primeira pergunta que ocorre fazer é perguntar se a condecoração tem a ver com os cuidados prestados ao primeiro-ministro inglês naquela semana, se tem a ver com o agradecimento que o próprio lhe dirigiu publicamente ou se tem a ver com alguma façanha que desconheçamos.

Vamos a direito. O enfermeiro Luís, de Portugal, recebeu uma distinção em razão dos cuidados prestados ao Boris e, claro, do reconhecimento público que teve a esse propósito.

E aqui, e para portugueses menos experientes nisto de se ser português, começa um enorme constrangimento, mas que nunca deverá ser extensível ao próprio enfermeiro Luís. Mas ser português significa estar habituado a estas coisas. Pois se há uma alta figura de Estado, e sobretudo de um país que lá no fundo consideramos estar acima do nosso, que elogia um português, ficamos inchados pelo orgulho que nos toma.

Não vale a pena fazer de conta. Foi evidente o delírio nacional com os agradecimentos de Boris a um dos nossos. Pode tratar-se de uma caraterística normal para um país pequeno e pobre, e com grandes tradições de subserviência perante países europeus mais ricos. Normal não quer dizer que não seja extremamente pindérico. Somos pindéricos nestas coisas.

Partir deste contentamento, e transformá-lo em condecoração, foi surreal. Certo. Mas também pode ser encarado como o assumir daquilo que somos. Perdemos a vergonha. Condecorámos um homem por ter feito o seu trabalho ao prestar cuidados de saúde a Boris Johnson e por este ter ficado agradado. Podíamos estar cheios de orgulho do enfermeiro Luís e disfarçar. Mas não; sem complexos mostrámos qual era a dimensão da coisa.

Trata-se de um primeiro-ministro que, ele próprio, não merece qualquer distinção. Um homem que fez festas quando os ingleses assistiam aos funerais de familiares próximos por Zoom. Um inconsciente para não entrar no domínio da ética ou da moral. Se isto diminui o mérito do nosso enfermeiro? Não. Mas faz um belo conjunto.

Condecorámos Luís Pitarma porque continuamos a fazer o culto dos feitos dos portugueses lá fora. Ainda por cima, lá fora foi o Reino Unido. Um país de gente finíssima e sofisticada que nos deu atenção.

Mas vamos supor que o enfermeiro Luís tinha prestado os seus cuidados de saúde a um operário inglês. Nada feito. Não haveria condecoração. E se os tivesse prestado ao primeiro-ministro de um pequeno país africano? Estamos a entrar em matéria muito embaraçosa, mas diria que não; também não haveria condecoração nenhuma.

Também se recordarão da algazarra quando Obama escolheu um cão de raça portuguesa. Ou da festa a propósito da iluminação natalícia, em algumas ruas de Londres, da autoria dos irmãos Castros. Enfim. Não basta sermos pobres, também tínhamos de ser parvos.

A condecoração em causa “destina-se a galardoar atos ou serviços meritórios praticados no exercício de quaisquer funções, públicas ou privadas, que revelem abnegação em favor da colectividade.” Certamente o exercício da profissão por parte deste enfermeiro, como de tantos outros, é digno de reconhecimento. E é certo que, como milhares de outros enfermeiros, está no Reino Unido porque Portugal não oferecia as condições remuneratórias e de progressão na carreira, a que teriam o direito de aspirar. Isto é triste.

Em Portugal é mais fácil ser condecorado no 10 de junho do que conseguir uma vida justa. Uma das piores críticas que se pode fazer a um português é dizer-lhe que é mesmo português e usando a palavra como adjetivo. O mesmo para o “à portuguesa”. Quando se ouve que alguma coisa foi feita à portuguesa já se sabe que não foi bem-feita.

Foi assim que tratámos o enfermeiro Luís “de Portugal”.»

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