16.6.22

O veneno da humilhação



 

«A humilhação é daqueles temas que, tal como o tempo para Agostinho de Hipona, sabemos o que é se ninguém nos questiona sobre o assunto, mas, se nos obrigam a explicar, a evidência esfuma-se. Como diferenciar a humilhação de noções irmãs tais como a vergonha, o desprezo, a desonra, a desqualificação, a exclusão ou o sentimento de injustiça? Como explicar um sentimento vivido muitas vezes de forma tão íntima e silenciada? Não é fácil explicar o que é de facto a humilhação quando toca a esfera privada, pessoal, mas também coletiva, ou em contexto histórico ou geopolítico. Ouvimos, nos últimos tempos, falar de humilhação em várias situações como no caso Chris Rock e Will Smith, no da cadeira ausente para Ursula von der Leyen na Turquia, ou as declarações de Macron sobre “não humilhar a Rússia”, fazendo eco ao Tratado de Versalhes e à humilhação do povo alemão que teria levado à ascensão do nazismo.

Em A sociedade decente, o filósofo Avishai Margalit descreve a humilhação como sendo “todo o comportamento ou condição que constitui uma razão válida para uma pessoa considerar o respeito de si ferido”, fazendo também referência à noção de dignidade. Hélène Savoie Colombani em Da humilhação nos mitos kanak descreve a humilhação como sendo “um sentimento de vergonha que resulta de uma ofensa, de um ato que fere o amor próprio, o orgulho ou a dignidade do indivíduo ou de uma comunidade”. Mas como se faz o salto da humilhação para a vingança absolutamente violenta e desproporcionada?

Para o filósofo Olivier Abel, que publicou este ano o livro Da humilhação – o novo veneno da nossa sociedade, esta desproporção é parte integrante do processo de humilhação. Ao contrário da violência que pode ter uma resposta rápida, dou-te um estalo e tu retribuis, a humilhação segue um percurso lento, fica ali em lume brando, provoca ressentimento, rancor, ruminação até explodir. E quando explode é violento, amplificado, desproporcionado. Para Abel, “o papel da humilhação na história é mais importante do que o da violência”. No caso da Alemanha, defende o filósofo, produziu-se uma narrativa, um reescrever da história que tinha precisamente como objetivo exacerbar o sentimento de humilhação do povo alemão. As dificuldades económicas não chegam para excitar um povo, tal como não chegam para explicar comportamentos de voto, como escrevi há tempos aqui numa crónica.

Mas a humilhação não conduz sempre à vingança desproporcionada. Nos assassinatos em massa nas escolas dos EUA, quando estes são cometidos por indivíduos mais jovens, apresenta-se muitas vezes a explicação do historial de assédio, das humilhações passadas enquanto aluno. Corre pela Internet um meme com a célebre foto de Elizabeth Eckford, uma das primeiras alunas negras a frequentar uma escola mista em 1957, a ser agredida verbalmente por um grupo de jovens que gritavam “volta para casa, preta”, “volta para África”, no qual está escrito: “humilhada todos os dias, nunca atacou uma escola”.

Poderia também dar aqui o exemplo dos feminicídios, homens que matam mulheres, que por vezes o fazem por sentimento de humilhação, “porque ela já não quer ser minha, rejeitou-me, vi-a dançar com outro”, etc. E mulheres vítimas de humilhação contínua que não passam para uma fase de vingança desproporcionada. Relembrando-nos a conhecida reflexão, atribuída à escritora Margaret Atwood, mas que na verdade é um resumo do excerto de uma conferência: “Os homens têm medo de que as mulheres se riam deles. As mulheres têm medo de que os homens as matem.” Ao que poderíamos acrescentar: as mulheres têm medo de que os homens as matem porque eles não admitem que “elas se fiquem a rir”.

Existem várias formas de lidar com a humilhação: “Muitos dos que são humilhados não são humildes. Alguns reagem à humilhação com raiva, outros com paciência e outros com liberdade. Os primeiros são culpados, os segundos inofensivos e os últimos justos”, escrevia há quase um século o abade francês Bernardo de Claraval. A correlação entre humilhação e humildade é essencial, pois pode precaver a passagem à vingança, à exageração do orgulho ferido, mas por outro lado também pode fazer o indivíduo cair numa depreciação extrema de si próprio podendo até levar ao suicídio. O monstro não é aquele que me humilha, o monstro sou eu, como bem descreve Sartre.

A questão da humilhação extravasa, portanto, as relações interpessoais, ocorre também ao nível do grupo ou das instituições. A nossa sociedade foi aos poucos saindo da utilização da humilhação como castigo, as orelhas de burro e as reguadas já não se usam, mas processos de humilhação continuam sob outras formas na escola, mas também na relação da polícia ou da justiça com pessoas negativamente racializadas.

A humilhação continua ainda a ser um espetáculo, um divertimento, desde emissões televisivas como “o elo mais fraco”, o estilo de comédia apelidado “roast” que permite insultar, humilhar uma personalidade sendo esta obrigada a manter-se imperturbável, insensível, sem contar com as redes sociais, provedoras prolíficas de todo o tipo de humilhação pública. Encontramos essa mesma injunção à passividade nos que criticam o “politicamente correto”, naqueles que se indignam porque “já não se pode dizer nada”. O verdadeiro problema que aqui se nos coloca não é o da liberdade de expressão dos humilhadores, mas o da liberdade de resposta dos humilhados. O que estas pessoas não suportam é que aqueles que se calavam antes, aqueles que respondiam “sim” à ilustre pergunta “não levas a mal, pois não?” agora respondam “sim, levo”.


É preciso, pois, encontrar um equilíbrio na resposta à humilhação, entre a humildade extrema, o “dar a outra face” crístico, e a vingança desproporcional injustificável, entre a passividade e o ódio. E isso passa pela justiça e liberdade. E ainda por repudiar a manipulação de sentimentos de humilhação baseados em orgulhos supremacistas e a sua justificação ou tolerância. Em deixar de tomar as dores dos mais fortes quando estes atacam os mais fracos. Mas, sobretudo, é necessário construir uma sociedade na qual a humilhação não seja valorizada e aplaudida, onde cuidarmos uns dos outros não seja visto como uma fragilidade, mas como uma resistência.»

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