20.12.18

Pressas para o Natal, pressas para tudo



«Este ano o Natal começou mais cedo. Mal as praias davam por finda a estação dos banhos (os vigiados, claro está, que os outros dispensam limite no tempo), já surgiam em prateleiras e montras, primeiro a medo e depois com destemor, as primeiras quinquilharias natalícias. E lá vieram as árvores-miniatura, Pais-Natais para todos os gostos, bolas reluzentes e enfeites dourados, azevinho falso e luzes, muitas luzes, em caixinhas a exibir as maravilhas do LED. E também não tardaram os doces. Em Outubro, já espreitavam bolos-rei. E enquanto se iam pendurando pela cidade (e isto foi visível em Lisboa) as iluminações do costume, à espera do dia exacto para accionar as ligações, as lojas misturavam à doçaria habitual os sazonais sonhos, coscorões ou fatias douradas, que, a julgar pelo dia seguinte, tinham já clientela. É talvez fatalidade moderna, esta correria. E nem sequer é de hoje, vem de trás. Nas férias de Verão começa a “despachar-se” o Natal, no Natal já se fala da Páscoa, que num atropelo se sucede ao carnaval e desliza para os Santos Populares, que também se “despacham” a bom ritmo para encher praias e hotéis de gente apressada que anseia pelo Natal – para voltar a completar o infindável circuito das festas movidas a comércio, com reservas cada vez mais antecipadas, talvez na redentora esperança de que, assim sendo, se garanta longevidade. Um bilhete comprado para daqui a um ano dá-nos, ao menos, o conforto de pensar viver até lá; coisa que não preocupa minimamente o vendedor, claro, e daí ter-se generalizado a prática dos seguros para cancelamentos imprevistos: uma viagem, uma doença, coisas piores.

Os espectáculos, em particular os musicais, já vivem num ciclo infindável. Acabado um festival, começa-se logo no dia seguinte a vender bilhetes para o próximo. É só daqui a um ano, mas que importa? Alguns até esgotam com muitos meses de antecedência. Talvez comecem a vendê-los para mais anos, anunciando logo um cabeça-de-cartaz qualquer, ou exibindo apenas a sua própria fama e nome. Por exemplo: o NOS Alive começou a vender bilhetes para o Passeio Marítimo de Algés mal terminou a edição deste ano, agitando o trunfo de “124 actuações em 3 dias esgotados”, o que para início bastava. Agora, já com nomes anunciados (The Cure a abrir e Smashing Pumpkins a fechar), será mais fácil. É só em Julho, mas a julgar pelos anos anteriores, devem vender a bom ritmo.

Não só eles, também os festivais Vodafone Paredes de Coura (Agosto), EDP Vilar de Mouros (Agosto), MEO Sudoeste (Agosto), NOS Primavera Sound (Junho), Bons Sons (Agosto), EDP Cool Jazz Fest (Julho), Monte Verde (Agosto), Laurus Nobilis (Julho) ou Soam as Guitarras (Abril), entre tantos outros que enchem recintos e por aí virão mais uma vez, já abriram a “caça” ao cliente ávido. E há, a par deles, espectáculos avulsos à distância de meses que também já esgotaram, como Michael Bublé, em Setembro, com data extra em Outubro. Daqui não virá mal ao mundo, note-se, mas tal pressa torna-se obsessiva. E o burburinho avoluma-se nesta época, com as empresas a criarem “pacotes de Natal” para o “sapatinho”.

Porém, quando se olha com vagar e lucidamente para a vida, às vezes escrevem-se coisas como esta: “Começo a olhar para as estantes e a notar, com melancolia, as obras que ainda não li e já não vou ter tempo de ler. As ideias que não vou conhecer e outras que não tive tempo de aprofundar. A música que já não vou ouvir e outra que não voltarei a ouvir. Dito assim, parece que tudo isto são apenas palavras. Mas, dentro de mim, tornou-se uma ferida profunda e muito sentida. É a consciência, ao vivo e a quente, de tudo quanto desperdicei.”

É uma pequeníssima passagem do recém-editado Aperto Libro, Páginas de Diário I – 1977-1980 (virão mais!) do escritor e poeta Eugénio Lisboa. Aquelas linhas, escreveu-as ele em Agosto de 1989, quando deparou com a “evidência” de “viver a última etapa” da sua vida. Mas passaram-se quase trinta anos e ele continua activo e lúcido, a escrever e a editar, ainda que certamente sem ler ou ouvir tudo o que queria (como todos nós). Porque a vida, mesmo quando parece longa, é sempre breve para o inatingível horizonte do pleno conhecimento. Talvez por isso devamos deixar, num gesto compensador, as pressas de lado, dando o devido valor a cada momento antes de inevitavelmente (há tempo) passar ao seguinte. Feliz Natal.»

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