22.10.20

Aceitar viver moderadamente

 


«Não vale a pena dourar a pílula. Os números são claros e correspondem, aliás, ao que se tinha previsto que aconteceria neste inverno. Uma segunda vaga mais forte do que a primeira sem a possibilidade de confinamento, bala que só podíamos usar uma vez. Com o aumento exponencial e previsível dos infetados, é provável que o Serviço Nacional de Saúde entre em ruptura e mais do que certo que o sector privado tentará ficar com a parte barata – os doentes não-covid –, para compensar as perdas financeiras que teve durante a pandemia. Já se sabe que as crises para muitos são sempre oportunidades para alguns. 

Valem pouco os gestos dramáticos, as medidas radicais, os abanões. Isso serve para acalmar os mais nervosos e proteger os responsáveis políticos do escrutínio público, transferindo para os cidadãos as responsabilidades do que corra mal. São precisas medidas permanentes, fáceis de entrar na rotina e sem mensagens contraditórias. Há as óbvias, como o uso de máscara. Mas a mais relevante é a redução drástica de contactos. Isto não passa por confinamentos, que teriam efeitos sociais, económicos e de saúde pública devastadores. Não passa pelo isolamento de grupos de risco, porque isso teria efeitos terríveis, como já percebemos pelo que aconteceu nos lares. 

Este objetivo exige uma postura diferente da que tem sido exibida por António Costa. O desnorte, com o avanço e recuo na proposta da StayAway Covid, gera desconfiança nas autoridades. E a saída também não é instalar o pânico. Para isso já temos os dois bastonários-abutres que regressam de cada vez que sentem que podem tirar algum proveito político (e no caso da Ordem dos Médicos, também uma ajudinha ao sector privado) das dificuldades. O pânico pode provocar reações imediatas, mas leva a uma fadiga emocional que, ao fim de poucas semanas, tem efeitos contrários aos desejados. Não precisamos, quase meio ano depois deste massacre ter começado, de sustos. É precisa a ideia de um rumo partilhado. Isso passa por regras de convivência que entrem na rotina e pela redução de contactos supérfluos, sem excessos asfixiantes e impraticáveis por muito tempo. 

O abismo para onde se estão a atirar vários governos europeus rebenta com os consensos indispensáveis para lidar com esta pandemia nos próximos meses. O que defendo vai contra o ar deste tempo, em que nada pode existir entre o “confina tudo” e o “isto é tudo uma grande aldrabice”. É preciso ganhar a esmagadora maioria das pessoas para comportamentos preventivos voluntários que não destruam as suas vidas, o seu estado mental e o que resta da economia. Reduzirmos drasticamente contactos sem deixarmos de viver. Escolher o que achamos fundamental. Vivermos um pouco menos sem deixarmos de viver. E, em vez de nos darem abanões ou de desatarmos aos gritos uns com outros, dividindo o país entre “histéricos” e “irresponsáveis”, aceitarmos viver moderadamente durante uns meses.» 

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