«Quando o presidente Trump tomou posse no seu primeiro mandato e anunciou que iria “put America first”, o presidente chinês foi a Davos defender que uma globalização regulada era benéfica para a economia mundial. Na altura, muitas vozes comentaram que quando a China defende a abertura dos mercados e os Estados Unidos a criticam, alguma coisa nova estava a acontecer. No entanto, entre a resiliência dos mecanismos institucionais da democracia americana e o impacto da pandemia, nunca chegámos a perceber o alcance e a dimensão das políticas propostas pelo presidente americano.
Se os últimos 20 dias são uma amostra do que nos espera nos próximos quatro anos, muito está a acontecer. Por um lado, Trump claramente percebeu que a Constituição e a lei poderiam dificultar ou impedir a sua visão de “put America first” e está a desmantelar os instrumentos federais que limitam o poder da Casa Branca. Por outro lado, Trump está a retirar os Estados Unidos da Comunidade Internacional, quer pela anunciada imposição de tarifas alfandegárias que poderão levar a uma guerra comercial de onde ninguém se sairá bem, quer pelo abandono ou pela asfixia financeira das organizações internacionais que tentam, melhor ou pior - e na feliz expressão de ex-secretário-geral da ONU Dag Hammarskjöld - “evitar que a Humanidade acabe no inferno” ou quer ainda pelas propostas para o Canadá, a Gronelândia, o Panamá e Gaza, que ignoram todas as regras e procedimentos que estão na base das relações internacionais que nos regem nos últimos 80 anos.
Ao mesmo tempo, Moscovo, que é um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU (UNSC) e, portanto, tem responsabilidades especiais na promoção do Direito Internacional, resolve rasgar a Carta das Nações Unidas e invadir a Ucrânia. E, juntando insulto à infâmia, fê-lo enquanto exercia a presidência rotativa do UNSC.
Paralelamente o Médio Oriente está a ferro e fogo, com violações constantes e sistemáticas do Direito Internacional, do direito da guerra e dos Direitos Humanos. E, embora esquecidos dos meios de comunicação social, os conflitos no Corno de África, nos Grandes Lagos, no Sahel e em partes do Magreb continuam há anos sem um fim à vista.
Finalmente, do outro lado do mundo, a China apresenta uma narrativa que vem ganhando adeptos, com um número cada vez maior de países que têm em Pequim o seu principal parceiro comercial e que estão a aderir à organização económica de países em desenvolvimento, alguns deles representando as principais democracias da América Latina, da Ásia e de África.
E tudo isto se passa quando um conjunto cada vez mais significativo de Estados-membros da União Europeia têm lideranças que se aproximam da visão que Trump e (alguns) Putin têm do mundo e da Comunidade Internacional.
O mundo está, de facto, de cabeça para baixo e terá chegado o momento de reconhecer que precisamos de um fórum internacional que reúna as democracias de todo o mundo, onde possamos ter as conversas difíceis, mas necessárias, para salvarmos o muito que o modelo do pós-guerra nos deu e mudar o outro tanto que já não corresponde às exigências do séc. XXI. Se não formos capazes de mobilizar os países que respeitam o Direito Internacional e, internamente, promovem os direitos individuais e coletivos das pessoas, o Estados de Direito, o controlo democrático das instituições e que escolhem as suas lideranças através de eleições livres e justas, acabaremos a olhar para o passado com saudades e para o futuro com angústia.»
1 comments:
"...precisamos de um fórum internacional que reúna as democracias de todo o mundo, onde possamos ter as conversas difíceis, mas necessárias,..."
Ok! Mas, esperem!
Quem "pariu" o actual estado de coisas foi uma "democracia", não foi ?!
Se as democracias podem "parir" e "manter" estas personagens no poder, então, a democracia é uma falácia e precisamos de inventar outro sistema, mais resistente...até ao próximo descalabro!
Enviar um comentário