«Num futuro não determinado, a polícia tem uma unidade especializada em impedir os crimes antes mesmo destes acontecerem – o Pré-Crime. Utilizando um misto de conhecimento paranormal e inteligência artificial, a investigação não se centra nos suspeitos que tenham cometido um crime, mas nos que, num futuro próximo, os poderão vir a cometer. Quem cai na rede da polícia, acusado por um crime que ainda não cometeu, não tem qualquer forma de se defender e é automaticamente condenado. Com menos ficção científica e ainda menor sofisticação do que “Relatório Minoritário”, de Spielberg, o nosso Ministério Público não anda longe desta linha preventiva de intervenção.
A notícia que João Galamba foi escutado ao longo de quatro anos, revelada pelo Expresso, é mais uma demonstração que a lógica de investigação criminal foi invertida. Em vez tentarem descobrir o que aconteceu e como foi feito, andam anos a fio à escuta para ver se alguma coisa acontece ou parece acontecer.
Apenas quatro meses depois de ter tomado posse, ainda mal acabado de conhecer os cantos à casa e os dossiers que tinha pela frente, já o Ministério Público estava a escutar o secretário de Estado, seguro que alguma coisa ele acabaria por fazer. De lá para cá não o largaram. Em quatro anos, de acordo com a revista Visão, recolheram mais de 80 mil chamadas de João Galamba. São milhares de horas de conversas e milhares de mensagens.
Quantos dos que apontam o dedo a Galamba aguentariam tamanho escrutínio sem dizerem qualquer coisa de suspeito? Não estou a dizer culpado, note-se, porque a própria natureza descontextualizada das escutas é dada a equívocos. Tirando ermitas e pessoas com dificuldades de socialização, ninguém está isento de conversas que, descontextualizadas do elemento pessoal, possam ser erroneamente interpretadas. As transcrições deixam de lado a ironia, a piada, o conhecimento de anos que duas foram travando.
Num Estado de Direito tem de existir proporcionalidade entre o bem a perseguir e o que estamos a colocar em causa, enquanto sociedade, ao aceitar o policiamento da esfera privada. Quatro anos a escutar um governante para encontrar dois ou três almoços pagos por empresários (e dez chamadas que foram incluídas no processo) é a prova da leviandade com que juízes renovam o prazo legal de três meses das escutas e com que o Ministério Público avalia os meios humanos e financeiros que tem à sua disposição.
Se todos os especialistas ouvidos pelo Expresso falam em abuso, Vital Moreira lembra que o “Ministério Público não deve iniciar nenhuma investigação que inclua meios intrusivos (escutas, buscas, etc.) sem um juízo prévio, superiormente aprovado, sobre se a denúncia tem alguma viabilidade” e sempre que se trate de “meios intrusivos na privacidade ou na liberdade” estão “sujeitos aos princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade”.
Estes meios intrusivos tornaram-se a norma e não a exceção, como fica evidente no excelente trabalho do Diário de Notícias, que nos diz que há 15 mil pessoas a ser escutadas por um conjunto interminável de forças policiais, tributárias ou de investigação criminal. Parece haver um uso extensivo e intensivo das escutas como meio de prova. No caso Influencer, os advogados de defesa expressaram o seu espanto pelo facto de as escutas serem o único meio de prova apresentado num caso que levou à queda do Governo.
O maior serviço público da peça do DN é tornar claro como, ao contrário do adágio popular, quem nada deve tem sempre razões para temer. Da mesma forma que, no Relatório Minoritário, os meios de prova da unidade do Pré-Crime estavam longe de ser infalíveis e condenavam erradamente quem nada iria fazer, apresenta-se inúmeros exemplos de erros grosseiros cometidos nas transcrições das escutas telefónicas, que até já foram detetados, numa leitura quase imediata, neste caso.
Há frases cortadas a meio na transcrição para aparentar culpabilidade, sendo as gravações negadas durante meses ao advogado. Há advogados escutados durante dois anos por “engano”. Temos frases que, percebendo-se que são piada ou ironia entre pessoas que se conhecem, são tratadas como confissão de uma atividade criminosa. Há gravações onde, não se percebendo a frase ou o seu contexto, a transcrição vai à procura da palavra que mais jeito dá para condenar quem falou. Em todos os casos o mesmo denominador: “apenas foi aproveitada a parte da conversa que interessava à acusação”.
É o resultado deste trabalho, de escutas “manipuladas” ou de uma “ratoeira armada pelo Ministério Público”, que depois vai parar às capas dos jornais. São elementos parciais que são entregues a jornalistas, servindo para entregar suspeitos aos tribunais da opinião pública, sem que estes se possam defender. Com processos mediáticos que se arrastam uma década sem acusação, temos uma condenação sem júri ou juiz. A perceção pública de buscas policiais numa autarquia ou numa sede partidária faz o resto. Mais ainda quando se retiram os telefones e os computadores para tentar encontrar provas sobre qualquer outro assunto.
Não se investiga para fechar um processo, mas para tentar descobrir processos futuros. É uma investigação por arrastão, método ilegal, que leva casos tão caricatoscomo o que agora foi encerrado contra a presidente da Câmara de Matosinhos, acusada por ter nomeado o seu próprio chefe de gabinete sem concurso público (como é generalizado, legal e aconselhável).
A bonomia com que aceitamos que metade vigie e escute a outra metade resulta de uma cultura que promove o abuso do poder coercivo e repressivo do Estado. Uma cultura onde se diz mal do Estado, mas se desprezam os direitos dos cidadãos perante os abusos desse mesmo Estado. Quarenta e oito anos de ditadura deixam as suas marcas: o enraizamento do “quem não deve não teme” foi uma delas. Não é por acaso que, das 15 mil pessoas a serem escutadas, são quase sempre políticos, e não empresários ou banqueiros, a aparecer nas capas de jornais. Para manter o aparato repressivo e justificar os fraquíssimos resultados é preciso contar com o apoio popular. E nada mais popular do que servir um político numa bandeja.
Os escutados não são todos inocentes, como é evidente. Mas a generalização deste meio de prova, ainda por cima menos eficaz e fiável do que se tenta fazer crer, é típica de sociedades policiais e autoritárias. São as polícias políticas que escutam pessoas à espera que comentam crimes. As polícias de investigação escutam suspeitos de crimes à procura de provas. A ideia de que a terraplanagem de direitos cívicos fará nascer uma sociedade menos corrupta já mostrou onde nos conduz. Em Itália, a República dos Juízes acabou em duas décadas de Berlusconi e num governo liderado por fascistas convertidos. Uma República de Procuradores à Escuta não nos levará para melhor do que isso.»
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