«Ainda hoje, quando entro na Biblioteca Nacional de França, passados mais de dez anos, sinto uma estranha sensação de opressão. Vivi ali dentro uma espécie de memória traumática de que o meu corpo se lembra de forma involuntária. Para a minha tese de doutoramento sobre a nossa capacidade de empatia, passei algumas semanas a ler sobre como se fabricam monstros. Como podem pessoas banais transformar-se em verdadeiros monstros morais. Como se pode destruir a empatia, a humanidade de uma pessoa, naturalmente constituída de emoções e comportamentos morais, indispensáveis à sobrevivência dos animais sociais que somos.
O que mais me impressionou nessa altura foi o trabalho imersivo de entrar na cabeça de quem foi um monstro, como antigas crianças-soldados, torcionários e terroristas. Os seus testemunhos sobre essa fase das suas vidas, do processo de desempatia, da maneira como viam as suas vítimas no momento da violência são muito desestabilizadores. Pensei neles quando li alguns testemunhos de jornalistas que viram os vídeos das câmaras subjetivas do ataque do Hamas e de como lhes impressionou essa perspetiva inédita de ver a violência do ponto de vista de quem a perpetra.
Em vários contextos de guerra, massacres, genocídios, existem constantes que passam por desumanizar os inimigos, relegando-os para o lugar de animais considerados repugnantes ou nocivos como baratas, ratos ou serpentes. E, ainda, a desindividualização, passando a ser impossível ver o inimigo como uma pessoa, mas como uma massa informe em que toda a gente passa a culpada ou dispensável, passível de ser transformada em meio para um fim, ou dano colateral.
Muitos dos testemunhos descrevem o facto de se olhar para o inimigo sem nunca pensar que este tem “uma irmã ou um irmão” ou ainda que, sendo “animais sem alma nem consciência” e não fazendo parte da mesma humanidade, toda a violência é possível. Faz parte do processo de desumanização retirar a roupa do inimigo porque um corpo nu está mais perto do animal e a nudez permite uma maior despersonalização. Para garantir que não se veja a sua humanidade vendam-lhes os olhos, baixam-lhes a cabeça ou posicionam-se atrás das vítimas, porque o “olhar nos olhos” é um perigo, visto este poder acordar a humanidade do monstro agressor.
Lembrei-me destes testemunhos quando vi as imagens recentes de palestinianos sem roupa, de cabeça baixa ou de costas capturados pelos soldados israelitas no Norte de Gaza. A questão da humanidade que surge através da cara do outro é uma das constantes no testemunho dos torcionários: “Lembro-me da primeira pessoa que olhou para mim, no momento do golpe final. Foi qualquer coisa. Os olhos daquele que matamos são imortais (…) Os olhos do morto, para o assassino, são, se este os vê, a sua calamidade. Eles são a acusação daquele que ele matou”, conta um dos assassinos do genocídio em Ruanda.
As guerras feitas através de bombas, de dispositivos à distância e agora com a ajuda da inteligência artificial têm a terrível consequência de não deixarem grande hipótese ao surgimento de um qualquer traço de humanidade inibidor de violência. A prevenção de massacres humanos passa, entre outras coisas, pela responsabilização dos agressores porque o sentimento de impunidade é fator agravante da violência, mas igualmente por uma educação sobre estes mecanismos de desumanização que implicam também a profunda desumanização do agressor. “Senti que já não tinha alma, que tinha passado a ser outra pessoa, que a minha alma se tinha separado do meu corpo, sentia que estava a perder o meu sentimento de humanidade”, “não éramos só criminosos, passámos a ser uma espécie feroz num mundo bárbaro”, relatam alguns torcionários.
Lamento, hoje, não ter investigado sobre o processo de desumanização de testemunhas exteriores, porque agora custa-me compreender como alguém não diretamente implicado, sentado confortavelmente num sofá, consegue apoiar incondicionalmente o massacre em Gaza de tantos civis, de tantas crianças. Questiono-me sobre os limites da sua (des)humanidade.»
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