27.5.22

Na cabeça de Putin

 


«A invasão da Ucrânia é mais do que uma guerra por território no intento de reconstruir o império russo. A sua lógica é mais ambiciosa. “É uma guerra de civilização. [Putin] procura alargar o domínio russo sobre o continente euroasiático.” Estas são duas teses desenvolvidas pelo ensaísta e filósofo francês Michel Eltchaninoff, no livro Dans la Tête de Vladimir Poutine, Actes Sud, 2015, e cuja tradução portuguesa, Na Cabeça de Putin (Ed. Zigurate), chegará às livrarias no dia 9 de Junho.

No auge da maior guerra na Europa desde o fim da II Guerra Mundial, é imperioso tentar perceber Vladimir Putin. Se é difícil penetrar na sua personalidade, resta conhecer as ideias que estão por trás da sua estratégia imperial. O livro foi escrito logo a seguir à anexação da Crimeia perante a dificuldade de perceber os objectivos e as intenções de Putin. A análise permanece actual e o autor acrescentou um curto capítulo final após a invasão da Ucrânia em 2022.

A filosofia russa de Putin ajudaria a compreender a estratégia de um líder que gosta de se mostrar enigmático. É um realista e, ao mesmo tempo, um homem que passou a ignorar a realidade, como se verifica na aventura ucraniana.

Numa entrevista recente ao diário Le Monde, Eltchaninoff reafirma que a ideologia de Putin assenta em quatro pilares: neosovietismo, eslavofilia, euroasiatismo e conservadorismo. “Putin nunca acreditou no comunismo mas é sensível ao patriotismo sacrificial do sovietismo.” Estaline pode ser apreciado como vencedor da Alemanha nazi e da “grande guerra patriótica”, mas o revolucionarismo de Lenine deve ser apagado.

Outro pilar é a eslavofilia, encarnada por pensadores como Nikolai Danilevski (1822-1885), leitura obrigatória para os responsáveis putinistas. Danilevsk acrescenta à eslavofilia tradicional “a ideia de um desenvolvimento orgânico da Rússia e de um confronto inevitável com o Ocidente, caracterizado pelo primado do Direito, pela predominância do comércio e por um materialismo que se opõe frontalmente a uma Rússia impregnada de cristianismo”.

O euro-asiatismo nasceu nos anos 1920 entre os imigrados “brancos” e nega que a Rússia seja próxima do mundo romano-germânico e da Europa Ocidental. É mais próxima das populações asiáticas: a Eurásia tem como vocação virar-se para o Oriente. Putin foi muito influenciado pelo filósofo Ivan Iline (1883-1954), que imaginava já uma “ditadura nacional como remédio para o caos separatista que se seguiria ao comunismo”.

A partir de 2013, Putin lança uma viragem conservadora, que reforça a sua aliança com a Igreja Ortodoxa. Faz a apologia da família tradicional e assume o confronto com a ofensiva liberal e o politicamente correcto: “A Rússia deve atrair os conservadores do mundo inteiro e fazer da Rússia o pólo mundial do conservadorismo.”

“Putin trava no seu espírito, cada vez mais fechado na ideologia, uma guerra de civilização. O objectivo é estender a dominação russa ao continente euro-asiático.” Sonha tornar-se líder da Europa quando os países europeus façam chegar ao poder os partidos nacional-populistas que Moscovo apoia e financia.

No seu discurso de 21 de Fevereiro sobre a visão histórica da Rússia e da Ucrânia, disse Putin: “Eles detestam-nos apenas porque existimos. A Rússia é fundamentalmente diferente da civilização ocidental.” Evocou a “ameaça existencial” que paira sobre a Rússia.

A Ucrânia tornou-se numa obsessão para Putin: ele não tolera a existência, ao lado da Rússia, de um Estado que proclamou a sua independência e começou a virar-se para a Europa ocidental. Retoma as teses de Ivan Iline a um nível quase apocalíptico: “Não seria exagero dizer que este impulso para uma assimilação violenta, para a formação de um Estado ucraniano etnicamente puro, agressivo em relação à Rússia, é comparável nas suas consequências ao uso contra nós de armas de destruição em massa.”

“Ninguém sabe, repitamo-lo, se Vladimir Putin enlouqueceu.” Mas a loucura dos ditadores costuma ser de outra ordem. “Esta sequência, na qual funde um passado mitificado num presente reinventado, sugere que ele caiu num mundo paralelo”, escreve Eltchaninoff na derradeira página do livro.

As “raízes ideológicas” ajudam a perceber a estratégia russa, mas não a decisão de fazer a guerra. Nem explicam a “cabeça de Putin” nem o seu desfasamento da realidade, facto que o torna particularmente perigoso.

Resta um ensinamento: a guerra decorre na Ucrânia, mas é mais do que geopolítica. Após a anexação da Crimeia em 2014, um marco histórico, “Putin preparou-se para o grande confronto com o Ocidente”. O imperialismo putiniano é dobrado por uma tentativa de restauração conservadora e de imposição do “Estado forte” no Continente. Por isso, a Ucrânia se tornou palco de uma guerra sobre a identidade da Europa.»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 26.05.2022
.

0 comments: