22.5.22

Marcelo, Zelensky, Costa e pequenos equívocos com importância

 


«Em 2016, quando foi eleito, Marcelo era o Presidente certo para o momento: parte da sociedade portuguesa vivia em grande tensão depois de quatro anos de memorando da troika, de Governo Passos-Portas e de dez anos de Aníbal Cavaco Silva em Belém, cujo segundo mandato foi marcado por elevados índices de penosidade. Quem não se lembra de cenas como aquela de que “para ser mais honesto do que eu tem que nascer duas vezes” que levante o braço.

Marcelo na Presidência foi uma pedrada no charco: subitamente, um país amochado pela troika parecia ganhar ânimo, primeiro com a formação da “geringonça”, depois com a eleição do novo Presidente. Marcelo não criou uma persona para chegar a Belém: foi sempre assim, com os seus defeitos e virtudes, encantador, sedutor, dotado de uma euforia capaz de quebrar muitas barreiras, hiperactivo, de uma inteligência fulminante, capaz de tratar de quatro assuntos enquanto almoça a sanduíche e o Sumol de laranja. Quem não apreciava o estilo dizia às vezes que Marcelo seria um perigo em Belém: lembro-me de pensar que isso nunca aconteceria. Marcelo era dotado de um elevado sentido de Estado, pese as excentricidades.

A questão é que, neste momento, há um novo Marcelo em Belém. E, ao contrário do que tem sido recorrente em todos os Presidentes, desta vez não parece que seja a síndrome do segundo mandato. O trauma que Marcelo vive neste momento é o da maioria absoluta do PS – e, como é mais inteligente do que todos, percebeu logo que isso lhe iria retirar qualquer espaço de manobra e diminuir consideravelmente o peso político. Perante a fraqueza do PS de então, Mário Soares tomou em mãos a tarefa de fazer oposição ao Governo Cavaco – dificilmente Marcelo seguirá esta linha, perante a ausência do PSD, mas não encontrou a sua própria linha.

Ainda durante esta visita a Timor-Leste, Marcelo lamentou-se de ter dissolvido a Assembleia da República por causa do chumbo do Orçamento. Se formos ler toda a literatura que no último ano Marcelo produziu sobre a necessidade de estabilidade, quase se responsabilizando a si próprio para que essa estabilidade existisse, vemos como o Presidente sofreu dupla derrota nos últimos tempos: os seus alertas valeram zero e o eleitorado deu uma maioria absoluta ao PS. A alternativa com que tanto sonhou o Presidente nunca, afinal, tinha existido.

Pode-se enquadrar neste estado de espírito (pesado) os sinais dos últimos tempos. O Observador contou que, na audiência com os partidos, Marcelo se queixou da sua falta de influência e tempo de antena. É humano, mas deslocado.

A revelação de que Costa iria encontrar-se com Zelensky no mesmo dia em que o Presidente estaria em Timor foi incompreensível. O gabinete de Costa guardava sigilo por razões de segurança e Marcelo tratou de “dar a notícia”, para fúria não só do PS e Governo como também, revela a edição deste sábado do Sol, dos militares – o semanário cita fontes militares a acusarem o Presidente de “falta de sentido de Estado”. Outra curiosidade foi a revelação de Marcelo que iria enviar a lei dos metadados (que ainda não existe) para o Tribunal Constitucional. Nem com a lei da eutanásia Marcelo decidiu anunciar o que fazia antes de lhe chegar às mãos. Percebe-se que o Presidente viva uma crise existencial com a sua família política aos trambolhões e sem a alternativa com que sempre sonhou – mas tem urgentemente que, como se diz agora, se “reinventar”.

P.S.: A visita de Costa à Ucrânia correu bem (embora com grandes aglomerações de jornalistas). Mas as palavras amenas sobre a adesão da Ucrânia à União Europeia não podem esconder o essencial: a UE, a receber a Ucrânia, fá-lo-á numa solução tipo Macron, pelo menos a médio prazo. O show-off de Ursula von der Leyen a entregar o papelinho da adesão foi só mesmo isso: show-off.»

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