«Há um problema na actual disputa interna do PSD, que está bem longe de ser exclusivo desse partido, mas que se revela com maior nitidez neste tipo de confrontos. Portugal, o país onde vivem e para onde dirigem a sua acção política, está completamente ausente do seu discurso político. Hesitei antes de escrever “completamente”, mas voltei aos textos, entrevistas, manifestos e outras produções de campanha e perdi as hesitações. Aliás, ainda recentemente numa discussão com Nuno Melo no Princípio da Incerteza tive ocasião de dizer o mesmo a propósito da sua moção programática ao Congresso do CDS escrita em “burocratês”.
A raiz é a mesma: onde é que vão os políticos buscar o seu conhecimento e o seu discurso sobre o país? A quatro fontes, intrinsecamente ligadas entre si, a comunicação social, que é a dominante, a experiência da carreira política intrapartidária, e, em menor grau, a sua experiência profissional, hoje muito dominada, naqueles que têm maior currículo, pela linguagem burocrática europeia, dos planos, directivas, normativas, e, por fim, à sua “escola”, à sua educação. Poderia acrescentar a sua experiência de vida, mas ela é desde muito cedo dominada por aquilo que referi como fontes, e tão artificial fora disso que pouco traz para a acção política.
Felizmente para todos, eles já se formaram num mundo muito mais pacífico, não correram o risco da guerra colonial, nem da prisão ou de andar a receber bastonadas, nem de ser despedido e ficar na miséria, ou ser velho e ficar sem parte da pensão e da reforma, ou de ter que trabalhar nas limpezas às sete da manhã, ou de carregar baldes de cimento, ou estar a apertar uma peça de um carro todo o dia, ou a limpar doentes num hospital, a conduzir um autocarro em Lisboa, ou sequer a ter que dar aulas a adolescentes algures nos subúrbios. Ainda bem que é assim, mas convinha perceber o seu privilégio etário, geracional, social, porque a maioria do país vive assim.
O que é que sobra? O contexto desta situação é, em muitos casos, não em todos, uma vida feita na carreira política, com muitos jornais e quase nenhuns livros, muita televisão e “redes sociais” e objectivamente pouca cultura. Os políticos encontram na comunicação social (e vice-versa para os jornalistas) uma casuística superficial, ao ritmo e ao modo da “novidade” jornalística, que condiciona a “agenda”.
Portugal é um país pobre, pouco desenvolvido, muito inculto, pouco cosmopolita e não me é indiferente que seja assim, e eu prefiro quem o diz com clareza e não anda com a boca cheia de “transições digitais” e outros slogans da treta do “politiquês” actual. Tudo isto é ainda verdade, embora os últimos quase cinquenta anos de democracia tenham melhorado de forma drástica todos estes parâmetros, e tenha havido um progresso muito significativo, a partir de uma situação em que a pobreza era muito maior, o analfabetismo, a mortalidade infantil, o provincianismo e, valor dos valores, em que não havia liberdade e éramos servos de uns senhores muito bem vestidos e bem-falantes (havia excepções) e umas senhoras de cabelo com o colchão do Nicolau Tolentino dentro. Houve uma verdadeira revolução nestes cinquenta anos, mas estamos ainda muito longe de deixarmos de ser pobres, atrasados, incultos e provincianos. E, nalgumas coisas, estamos mesmo a andar para trás, principalmente nos valores da sociabilidade e na cultura.
Não vale a pena estar a falar da evidência da pobreza. Antes das prestações sociais, e mesmo depois, metade dos portugueses é pobre. Mas a pobreza não entra verdadeiramente no discurso político.
Enganados pela jactância da “geração mais bem preparada”, onde se pode fazer um curso universitário sem ler um livro, entregamo-nos a uma dicotomia entre o ensino amável, sem esforço, fofinho e o decorar à bruta coisas em grande parte inúteis e que são esquecidas no mês seguinte. Mas o falhanço da educação não entra verdadeiramente no discurso político.
Mas também andámos para trás. A civilidade diminuiu. O português abastardou-se. Bastaram dois anos de restrições e confinamentos – o que seria se fosse uma guerra a sério – para aumentar a agressividade nas ruas, os divórcios ou os lamentos porque os meninos não puderam ir a discotecas e a “saúde mental” da população se deteriorou. Está tudo cheio de “estados de alma”. Os mais relevantes actores da felicidade dos dias de hoje, dependurada em frases guturais e insultos no Twitter, ou na “noite”, são a Super Bock e o Facebook ou o Instagram. Mas a incivilidade e a incultura não entram verdadeiramente no discurso político.
Também não vale a pena falar da desvalorização do trabalho a favor dos unicórnios e das start-ups em incubadoras, e outras coisas que ficam bem nos discursos modernaços, onde parece que a riqueza é obra exclusiva dos empresários e não dos trabalhadores. Deviam ler o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, esse texto comunista, já que não querem ler Karl Marx onde também aprendiam alguma coisa. Mas o trabalho não entra verdadeiramente no discurso político.
Por aqui adiante. Encontram um átomo destas coisas nos textos prolixos da disputa no PSD, nos discursos da Assembleia, nos anúncios dos governantes? Nada (deixemos por agora o PCP, que é de outro planeta, e o BE, que é um asteróide perdido na sua órbita). Por isso, eu torno-me um imprecador e sigo o exemplo do Milhazes. Os excitados e indignados profissionais das redes sociais ficaram entre agradados e zangados porque o bom do Milhazes traduziu à letra uma imprecação de uma multidão num concerto na Rússia contra a guerra – o “c…” com que eu não vou colocar a digna redacção do PÚBLICO no dilema de saber se escreve a palavra toda ou não. Mas o que apetece dizer aqui é o mesmo: olhem para Portugal, a vossa terra, a vossa Pátria, o local onde dez milhões de pessoas esperam que sirvam o seu bem comum, a sua autoridade no voto, a sua liberdade, “c…”!»
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