27.5.25

Resgatar a esperança

 


«"Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária."

Este é o primeiro artigo da Constituição da República Portuguesa. Não foi escrito por acaso, nem é fruto de entusiasmos revolucionários. É um compromisso sobre o tipo de sociedade que queremos construir. É também a base necessária para começar a resgatar a esperança.

Uma parte crescente da população portuguesa sente-se esquecida, maltratada e impotente. Quando é assim, a democracia fica em risco. Nas últimas eleições legislativas, mais de um 1,3 milhões de pessoas votaram num partido que faz da agressividade, da falsificação e da exploração do ressentimento a sua principal arma política. Para travar essa deriva, é preciso compreender o que está a acontecer e agir em conformidade.

O primeiro passo para resgatar a esperança é desmontar as falsidades que alimentam o ressentimento. Para isso, importa começar pelo princípio: as últimas cinco décadas de democracia trouxeram conquistas extraordinárias. Quem afirma o contrário ou está desinformado ou quer enganar.

Em 1974, mais de metade da população portuguesa era analfabeta ou tinha apenas a instrução primária. Hoje, mais de 90% dos jovens completam o ensino secundário e Portugal conta com mais de meio milhão de diplomados do ensino superior. A mortalidade infantil era de 38‰, hoje é de 3‰. Em 1974, a esperança média de vida após os 65 anos era de 13 anos; hoje, em média, quem atinge aquela idade pode esperar viver mais duas décadas. O risco de pobreza entre os idosos caiu de 35% para 20% só nos últimos 20 anos. Com todas as suas insuficiências, os sistemas públicos de educação, saúde e protecção social apoiaram transformações notáveis em todos estes sectores.

O acesso a água canalizada e saneamento básico universalizou-se. A rede de estradas e auto-estradas, de comunicações e de equipamentos culturais retirou do isolamento milhares de localidades em todo o país. A ciência portuguesa é hoje reconhecida internacionalmente, com centros de investigação de excelência e uma produção científica que passou de pouco mais de 300 artigos por ano em 1981 para cerca 30 mil na actualidade. Estes progressos não se deram por acaso. Devem-se à democracia, ao investimento público, à luta de muitos e à solidariedade nacional.

Mas recuperar a confiança perdida não passa apenas por reconhecer tudo o que a democracia e os valores da Constituição alcançaram. Passa por reconhecer o que não está a funcionar.

O problema da habitação atingiu proporções dramáticas. O preço médio do metro quadrado de habitação duplicou em menos de uma década, muito acima da evolução dos salários. Jovens e famílias inteiras são expulsos dos centros urbanos ou condenados a rendas incomportáveis. Perante o envelhecimento da população e sujeito a uma suborçamentação crónica, o Serviço Nacional de Saúde enfrenta dificuldades estruturais: listas de espera persistentes, falta de profissionais e uma crescente procura que não é acompanhada por recursos. O interior do país continua a perder população e serviços, acentuando desigualdades territoriais. Nas periferias das grandes cidades acumulam-se problemas de mobilidade, de acesso a serviços e de exclusão social. Os baixos salários persistem, apesar do aumento do salário mínimo. Ignorar estas realidades é tão irresponsável como negar os avanços das últimas décadas.

O terceiro passo para resgatar a esperança é afirmar com clareza que a resposta às fragilidades do país não pode passar por cortar direitos sociais, desproteger quem trabalha ou virar os mais desfavorecidos uns contra os outros.

O que precisamos é de mudar o modelo de desenvolvimento. É insustentável continuar a estimular sectores de actividade assentes em grandes volumes de mão-de-obra desqualificada, precária e mal paga, como temos feito nos últimos anos. Não podemos aceitar que existam empresas em Portugal a operar sob condições que vigoram em economias subdesenvolvidos. Seja nacional ou estrangeiro, quem vive do seu trabalho deve gozar dos mesmos direitos (condições laborais, salários, protecção social) e cumprir os mesmos deveres (pagamento de impostos e descontos para a segurança social). Num mundo onde as migrações internacionais são um fenómeno central (Portugal não é excepção, nem caso extremo), não precisamos apenas de gerir melhor as entradas: precisamos de mais e melhores políticas de integração, que evitem guetos e divisões artificiais entre pessoas.

É necessário travar a especulação imobiliária, alargar a oferta de habitação pública e cooperativa, impor limites ao alojamento local e ao uso especulativo de edifícios. Acima de tudo, precisamos de voltar a investir nos serviços públicos. A confiança das pessoas constrói-se com escolas de qualidade, centros de saúde acessíveis, transportes fiáveis, creches suficientes, espaços públicos seguros e políticas de proximidade.

Resgatar a esperança significa, por isso, valorizar o que fomos capazes de fazer, assumir o que precisa de ser corrigido e apresentar soluções concretas, justas e mobilizadoras. Não é tarefa para messias ou para um ciclo eleitoral. É um esforço colectivo, que exige escuta, humildade e persistência.

Quem hoje se deixa seduzir por promessas extremistas fá-lo, muitas vezes, não por convicção, mas por desespero. O nosso dever é mostrar que há outro caminho. Um caminho que não desiste das pessoas. Que não escolhe bodes expiatórios. Que não promete atalhos fáceis, mas constrói o futuro com base na verdade, na solidariedade e na dignidade.»


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