2.7.22

Não sabe o que é o nó górdio? Se não sabe devia saber

 


«Ele há dias, em bom rigor cada vez mais dias, em que o meu interesse pela política corrente portuguesa, se não é nulo, é quase nulo. Não é uma atitude aconselhável, porque o desinteresse pela coisa pública não é uma atitude cívica que se deva ter, mas não consigo, pura e simplesmente não consigo, passar o dia a ouvir e a ler sobre as trapalhadas entre António Costa e Pedro Nuno Santos, ou sobre a tragédia da menina Jessica, ou sobre as “contingências” na saúde, ou as ciclópicas tarefas do novo líder do PSD. No entanto, em todas estas histórias há aspectos relevantes, seja a qualidade da acção governativa, seja o retrato da miséria física e moral do mundo da pobreza e a sua implícita violência, seja o conflito larvar entre corporações poderosas, interesses privados e, de novo, a incompetência da governação, ou sobre o dilema entre uma oposição dos decibéis ou uma oposição reformista num país demasiado pequeno e atrasado para poder ultrapassar os interesses instalados.

De novo, insisto, tudo isto é relevante e não merece indiferença, mas… a pasta informativa que nos é servida todos os dias transforma-o numa espécie de puré de batata, ou melhor num puré de maçã adornado por frutos vermelhos e uma pétala ou uma pequena flor por cima, como um pastiche da pseudo-comida francesa que por aí se come. E quando não é só isso, no meio do puré está um fio de veneno, com a crescente politização escondida da informação, que torna mais saudável ler o Abril, Abril, um site informativo do PCP que não engana ninguém, do que a mais sofisticada e profissional manipulação da Rádio Observador pelas manhãs. Isto para quem não seja seguidor de Mitridates do Ponto, como eu sou há muito tempo, e corra o risco de se envenenar mesmo a sério.

A culpa é dos jornalistas? Já foi mais do que o que é, porque, entretanto, o turnover geracional político e jornalístico criou uma espécie de simbiose no pensar, no falar, no viver entre os jovens políticos e jornalistas - jovem aqui segue o critério do Konsomol - que cada vez são mais parecidos na visão do mundo, no vocabulário, no modo de viver entre si, na frequência de lugares, de restaurantes, de leituras, de “sítios”, do que vêem na televisão e ouvem na rádio, que se entendem como quem respira. É uma coisa que se tem vindo a desenvolver nos últimos anos, uma comunidade de vida e cultura, uma redução da política a critérios mediáticos, uma espécie de contínuo entre a má política e o mau jornalismo feito de uma atenção quase obsessiva às chamadas “redes sociais”, de uma redução da complexidade a favor de um simplismo redutor, de uma pobreza vocabular de que resulta numa incapacidade expressiva e, por isso mesmo, ou uma brutalidade argumentativa ou uma sucessão de lugares comuns, muito pouco estudo e uma dose exagerada de comentários e debates televisivos.

Todos os rodriguinhos dos nossos tempos são absorvidos, quer como aspirações, quer como tabus, com um medo pânico e um não-pensar em relação às matérias proibidas, seja o racismo, seja a homofobia, seja a condição feminina, seja, noutra área de “negócios”, a interiorização da economia da troika, a começar pelo PS. A indiferença face aos estragos feitos à língua portuguesa pelo Acordo Ortográfico, que só subsiste pela inércia cultural da ignorância, é mais difícil de mudar do que pôr-nos a todos a dizer “todes” para sermos politicamente correctos.

Viver vidas a sério, ou seja as que têm dificuldades e escolhas, não garante experiência, mas as vidas de plástico aproximam-se muito do mundo imbecil das/dos influenciadores das revistas do jetset. Esperem para chegar a praia e vão ver como é. Ler muito também não garante nem qualidade nem razão, mas ler pouco garante muita ignorância e, para quem vive num mundo com uma forte componente explícita de símbolos e escondida de interesses, resulta num modus operandi de rotina e incompetência e de serviço aos glutões que por aí andam e comem estes políticos e jornalistas ao pequeno-almoço.

Dizer isto é elitismo e sobranceria? Talvez. Mas tenho por mim a memória de José Medeiros Ferreira e um seu momento numa entrevista em que falou do “nó górdio”, e a jornalista perguntou-lhe o que era. Medeiros Ferreira irritou-se e respondeu: “Se não sabe devia saber”.»

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