8.11.25

Os cristãos cruéis

 


«As pessoas deviam ler o programa do Chega. É um documento bem elaborado, consistente entre os seus diversos pontos, e traduz a prática do partido. Ele assenta, nos seus pontos programáticos essenciais, na ideia da “auto-responsabilidade”, uma ideia que tem origem no liberalismo económico, associada a uma interpretação cristã pós-reforma, muito comum nas igrejas evangélicas.

O primeiro ponto do programa, intitulado “primado da moral”, é histórica e ideologicamente falso. Não há nenhuma “tradição civilizacional portuguesa” que pressuponha “que o primado moral da auto-responsabilidade antecede e determina tudo o resto na condição humana”. Nem há, “no campo religioso, a auto-responsabilidade deriva da matriz milenar judaico-cristã e, no campo intelectual, deriva da matriz milenar greco-romana”. Bem pelo contrário.

No segundo ponto, o sujeito é o Chega e, por isso, a declaração programática da “legitimidade moral” da sua posição apenas ao partido responsabiliza. E a frase é mais clarificadora do modo como a direita radical populista vê a sua função.

O Chega “assume que os inevitáveis encargos impostos à condição humana devem ser remetidos para o interior de cada sujeito individual ou colectivo, para a sua consciência e conduta pessoal, familiar, institucional, partidária, comunitária, nacional, humana”. Esta frase diz tudo – podíamos traduzi-la da seguinte maneira, inteiramente fiel ao seu conteúdo: se és pobre, a culpa é tua, se és sujeito a qualquer violação dos teus direitos, se és explorado, se és vítima de discriminação ou de qualquer forma de violência, a culpa é tua. São os “inevitáveis encargos impostos à condição humana”.

Os pontos seguintes do programa explicam por que razão “a solidariedade deve estar subjugada à auto-responsabilidade considerando que a inversão dos termos gera parasitismo social, subsidiodependência ou dependência da ajuda externa dos Estados com a consequente perda de autonomia, liberdade e dignidade de indivíduos e povos que, no limite, conduz à destruição das economias e à corrupção das democracias.”

Não é preciso ir mais longe, está de novo tudo dito. Por isto é que a extrema-direita, a direita radical populista assenta num ataque à “empatia” e à “compaixão”, que consideram a origem da fraqueza e da crise da “civilização ocidental”. Como Elon Musk disse várias vezes, “a fraqueza fundamental da civilização ocidental é a empatia”. Ou Charles Kirk, santo e mártir do trumpismo, que adorna uma T-shirt usada por Rita Matias: “Eu não suporto a palavra empatia, na verdade penso que a empatia é um termo new age construído e que faz muitos estragos.” Aqui, empatia está por simpatia, e por compaixão, termo também atacado pela direita radical populista, ao exemplo do trumpismo.

Para eles, a sociedade assenta no primado do mais forte, e os mais fortes ganharam essa condição por via da “auto-responsabilidade”, sendo que os mais fracos só são fracos ou porque não trabalham, ou porque se entregam ao “parasitismo social” e à “subsidiodependência”.

Estes homens e mulheres consideram-se cristãos, fotografam-se de joelhos nas missas, marcam encontros para a saída das igrejas e tem o apoio, para o Chega e o ADN, da crescente comunidade evangélica, ironicamente resultado do afluxo de imigrantes brasileiros.

O cristianismo tem muitos crimes na sua história, mas, nos nossos dias, a Igreja Católica e muitas comunidades luteranas e protestantes dão um papel relevante à “empatia” e à “compaixão” e já têm falado com toda a clareza na defesa dos mais fracos, em particular dos imigrantes, de uma forma que se percebe que é claramente contra o populismo anti-imigrante do Chega. Eles são contra os cristãos cruéis que se pavoneiam nas missas e depois olham com asco e desprezo os seus irmãos mais fracos, mais pobres, e conhecendo, em particular os evangélicos, a Bíblia, não querem aprender nada com ela.

Na verdade, quer no Antigo Testamento, nos ensinamentos do profeta Miqueias, quer no Novo Testamento, a fonte próxima do cristianismo ocidental, a ideia de “amar o teu próximo como a ti mesmo” é essencial. Não é um comentário de um qualquer profeta ou evangelista, é Jesus que aparece a dizê-lo, respondendo em seguida sobre “quem é o meu próximo?”. E Jesus responde com a Parábola do Bom Samaritano (no Evangelho de Lucas):

“Um homem descia de Jerusalém para Jericó quando caiu nas mãos de assaltantes. Estes tiraram-lhe as roupas, espancaram-no e foram embora, deixando-o quase morto. Aconteceu estar a descer pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo outro lado. E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o viu, passou pelo outro lado. Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele. Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte, deu dois denários ao hospedeiro e disse-lhe: ‘Cuide dele. Quando eu voltar pagarei todas as despesas que tiver’.”

Não custa perceber que face ao homem caído, vindo de uma guerra qualquer, fugindo da miséria e da fome, tentando atravessar meio mundo para mandar dinheiro para a sua família – como fizeram os portugueses emigrados na França e Alemanha –, tudo feridas do mal viver, o sacerdote e o levita que “passaram para o outro lado”, desprezando qualquer “compaixão”, são legítimos militantes do Chega. E o Bom Samaritano não é – é da turma da “empatia”.

Eu sou ateu, conheço a história do cristianismo, sei de muitas crueldades cometidas em nome de Jesus, mas também sei que nessa herança vem também a Parábola do Bom Samaritano e que muitos cristãos fazem tudo para a viver. Eles não fazem parte dos cristãos cruéis que hoje cultivam o desdém pela “compaixão”.»


1 comments:

Laurentino Regado disse...

Estes não são Cristãos, são apenas uma ramificação dos sanguinários das cruzadas.