1.10.22

O centro desapareceu, a esquerda acantonou-se e a direita está mais dinâmica do que nunca desde o 25 de Abril

 


«O facto de eu não conseguir escrever sem usar classificações que me parecem pobres - esquerda, centro, direita - não as torna ricas. Penso há muito que elas transportam várias ambiguidades e acima de tudo não são heurísticas, o seu uso não permite obter grandes resultados críticos. Mas estas classificações têm a seu favor dois factores poderosos que as tornam difíceis de evitar: uma forte componente tradicional, de memória intelectual e sentimental, e servem magnificamente para um tempo de simplificações e radicalizações, facilitam a conversação mesmo com o custo da complexidade. Tentemos construir alguma complexidade a jusante.

É evidente que há posições que são historicamente fáceis de definir como sendo de esquerda ou de direita, mas na actualidade elas hoje “funcionam” de uma forma que as “mistura” e as muda. Temos facilidade em ver o que estava, mas dificuldade em perceber as mudanças e os seus efeitos. Por exemplo, aquilo que referi como ambiguidades centra-se em questões da nacionalidade e da soberania, com uma direita a ser ao mesmo tempo europeísta e dúbia sobre a guerra na Ucrânia; com uma direita a incorporar uma gramática dos costumes tradicionalmente não-cristã, e uma esquerda radical a abandonar o marxismo e entrincheirar-se num plano “cultural” identitário. A isto somam-se vários silêncios na sua maioria tácticos, sobre a democracia em particular, sobre a liberdade, e em particular sobre a igualdade. Um dos efeitos desse silêncio é, na história nacional, as ambiguidades sobre a ditadura do Estado Novo e o colonialismo.

O ascenso de uma direita radical, no plano intelectual parecida com o Integralismo Lusitano, com um braço “civilizado” no anarco-capitalismo da Iniciativa Liberal e um braço populista no Chega, com um PSD entregue a todas as tentações erradas e sem efectivo papel político que não seja trazer votos e voz a esta radicalização e com um CDS desaparecido num combate que já não tinha fronteiras com a direita radical, é evidente. Nas franjas, este ascenso comunica com os movimentos antivacinas, pela “família tradicional”, contra a educação cívica e sexual.

É um processo já antigo e que tem mostrado um considerável dinamismo intelectual e político. Em bom rigor, o precursor é o Independente, a tentativa de Portas e Monteiro de fazer o PP no CDS, os blogues de direita, a revista Atlântico, a captura do PSD pela direita radical no tempo de Passos, associada à hegemonia política e comunicacional da ideologia da troika muito para além da direita tornando-se a vulgata da análise económica, social e política, a criação num movimento comum do Chega e da IL, e a estabilização de uma poderosa máquina de propaganda à volta do Observador. A Rádio Observador, por exemplo, não faz eleitores do PSD, faz eleitores do Chega e da IL. Em universidades como a Católica e em várias fundações, e com o papel de várias corporações ligadas à saúde, à agricultura, aos transportes, à grande distribuição, criaram-se think tanks, e obtiveram-se empregos, lugares de direcção e recursos consideráveis.

Este ascenso, assente em financiamentos empresariais e numa rede internacional associada aos partidos de extrema-direita no poder, aos braços de Trump e Putin na Europa, tem sido gerido no plano comunicacional com grande eficácia, com jornalistas de direita muito mais profissionais, com projectos de qualidade a milhas do que acontece no resto do espectro político, onde não há nada de semelhante e a pobreza e má qualidade é confrangedora. Ao mesmo tempo a migração de jornalistas ideologicamente militantes desta direita radical tem sido uma constante em áreas da comunicação social onde a esquerda tinha posições que pareciam sólidas. Dominam hoje o comentário económico e estão cada vez mais presentes na informação e no comentário político. Há uma crescente impregnação do “estilo” e o “estilo” é o melhor veículo para o conteúdo.

Face a este dinamismo, o centro desapareceu do mapa e a esquerda está catatónica. O alvo principal, mais do que o “socialismo”, é a direita moderada e o PSD, cujos votos mesmo fragilizados são o único instrumento viável para a chegada ao poder. Uma parte do centro sobrevive com muitas dificuldades no PSD e no PS, mas o falhanço da experiência de Rui Rio foi a sua última esperança num grande partido. No PS, existe uma herança da direita da troika, na ideologia das “contas certas”, o que torna o clamor contra um “PS de extrema-esquerda” um absurdo. Nem sequer o PS é muito socialista, com uma ala esquerda muito próxima do Bloco e uma ala direita que tem colaborado conscientemente com a direita radical.

É por tudo isto que o argumento de que há uma “hegemonia cultural da esquerda” tem uma função vitimizadora mas é uma completa falsidade. Já teve, em muitos casos parece que tem, mas está longe de ter. Uma coisa é uma “hegemonia” nas indústrias culturas em grande parte dependentes de subsídios governamentais ou autárquicos, outra é uma influência intelectual, no sentido “orgânico” gramsciano, que tem cada vez menos. O PCP perdeu toda a influência intelectual e o Bloco de Esquerda entretém-se com causas de gueto e vivia da moda mediática que perdeu para a IL.

Eu saúdo tudo o que na direita radical ajuda a clarificar as águas e as intenções, veja-os, ouço-os e leio-os com atenção. Mas também os conheço, sei de onde vêm e para onde vão e não quero ir por aí. Com uma diferença com o poema de Régio, a de que não cruzo os braços.»

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