16.7.24

Como se os direitos humanos não fossem defensáveis

 


«A decisão do novo primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, de suspender o plano do seu antecessor, de envio de requerentes de asilo para o Ruanda, não é uma questão de somenos. É a linha que separa humanidade da desumanidade, cada vez mais ténue, cada vez mais tolerada.

Rishi Sunak queria deportar para aquele país africano os candidatos a asilo, porque estava convencido de que isso iria inibir a entrada ilegal no país através do canal da Mancha, apesar das decisões em contrário do sistema judicial nacional e internacional.

O ex-primeiro-ministro chegou a colocar com firmeza a hipótese de o Reino Unido abandonar o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para ultrapassar as contrariedades judiciais, já que as de consciência nunca existiram.

Na semana passada, mais quatro pessoas morreram na tentativa de chegar ao Reino Unido vindas de França. O Ruanda não dissuade o desespero. Como é que a palavra deportação, de conotações históricas tão trágicas, pode agora ser invocada com esta naturalidade por uma democracia?

Como é possível sacrificar os direitos humanos em nome desse princípio de deportação em massa? Donald Trump, em caso de eleição, irá fazê-lo com todo o prazer e sadismo. Mais ainda, depois de ter sobrevivido a este atentado.

A guarda costeira grega tem sido acusada de contribuir para o afogamento de migrantes, ignorando a lei internacional que obriga ao seu resgate. Uma reportagem da BBC relatou casos de requerentes de asilo que foram atirados ao mar ou colocados em insufláveis sem motor, que se esvaziaram, e que morreram na sequência disso, e situações de pessoas que desembarcaram no país e foram perseguidas, detidas e levadas de novo para o mar.

Esta prática grega é conhecida e reiterada e conta com negligência da Frontex, a agência europeia da guarda de fronteiras externas da União Europeia. As instituições europeias nunca tiverem muita vontade de investigar estas acusações. No caso da agência europeia, Fabrice Leggeri, o seu ex-director executivo, teve de se demitir, em 2022, por graves acusações de desrespeito pelos direitos humanos.

Leggeri, que, ironicamente, dizia que a Frontex não deveria ser uma “superorganização não governamental”, foi recompensado pela União Nacional. Marine Le Pen escolheu-o como número três da lista que apresentou ao Parlamento Europeu a 9 de Maio.

A extrema-direita sabe reconhecer os seus. Esta crise humanitária que levou o jovem português Miguel Duarte a sentar-se no banco dos réus de um tribunal italiano, sob acusação de crime de auxílio à imigração ilegal, por ter participado em operações de resgate e de salvamento no Mediterrâneo, do qual foi ilibado, não é uma questão humanitária para todos. Há humanos mais humanos do que outros.

Assistimos a isto, e a muito mais, com a passividade de quem não tem de se preocupar com o que acontece a alguém distante, desconhecido e diferente.

A juventude do partido de Giorgia Meloni estica o braço e faz a continência nazi, candidatos da União Nacional publicam fotos em redes sociais com chapéus nazis, mas o ministro dos Assuntos da diáspora israelita, Amichai Chikli, afirmou, antes da segunda volta das eleições francesas, que “Marine Le Pen seria excelente para Israel”, Viktor Orbán acha que a Alemanha “já não cheira ao mesmo por causa de imigrantes”, etc. Este discurso odioso nem gera a devida condenação, nem indignação.

Tudo é possível. A Rússia não tem escrúpulos em bombardear um hospital pediátrico com doentes oncológicos, Israel bombardeia escolas e hospitais, e continua a usar a fome como uma arma no seu plano de eliminar um povo a quem não é reconhecido qualquer direito.

Emmanuel Macron disse em Washington o que todo sabemos, mas que nem todos conseguem dizer: a política de dois pesos e de duas medidas face à Rússia e a Israel é “profundamente prejudicial para todos nós”. Ou, como diz Pedro Sánchez, “se estamos a dizer ao nosso povo que estamos a apoiar a Ucrânia porque estamos a defender a lei internacional, isso é o mesmo que temos de fazer em relação a Gaza”.

Há uma organização chamada Nações Unidas que continua a fazer o papel para o qual foi criada. Que continua a chamar a atenção para a autodestruição do planeta, seja pela via do aquecimento global, seja pela via da centena de conflitos que se mantêm vivos, embora só ouçamos falar de dois, e, mais importante do que tudo, sem estar a soldo de nenhuma potência.

Pelo contrário, não há memória de um secretário-geral ter sido tão vilipendiado, simplesmente por ser isento e por respeitar a vida humana, seja ela qual for. O mundo seria mais insuportável sem a ONU e sem António Guterres. Até parece que defender direitos humanos já não é defensável.»


0 comments: