14.7.24

A desdemocratização da democracia

 


«Olhando para a decadência do macronismo e nunca pondo todos os ovos no mesmo cesto, a elite económica francesa estava preparada para o Governo autoritário de Bardella e Le Pen. Apesar da retórica popular, a União Nacional (RN) opôs-se ao aumento dos salários médios e mínimo, optando por propor a redução das contribuições para a Segurança Social, e defendeu menos regras ambientais. Como nos anos 30, a chegada dos fascistas ao poder teria o amparo do dinheiro. Foi o povo francês, e só ele, que a travou. E, para isso, a capacidade de a Nova Frente Popular (NFP) e de a França Insubmissa conquistarem o voto dos trabalhadores, dos subúrbios das grandes cidades e dos jovens foi crucial. Não foi apenas a extrema-direita que foi derrotada. Foi o “nem-nem”, que repetia as equiparações do costume.

Chegaremos ao dia em que Léon Blum, construtor da Frente Popular original, será considerado um extremista e o marechal Pétain não mais do que um conservador. Como recordou Rui Tavares na entrevista que lhe fiz esta semana, foi isso que aconteceu nos anos 30. Quando, em 1936, Blum defendeu as férias pagas, os patrões disseram que seria “a ruína de França”. E, já com o Governo colaboracionista de Pétain no poder (com apoio destes patrões), o antigo primeiro-ministro (judeu numa Europa antissemita) foi julgado como traidor, porque os seus desvarios socializantes teriam enfraquecido o país. Direitos que hoje consideramos naturais já foram radicais. E voltaram a ser. E é por isso mesmo que a esquerda não os deve abandonar. Deve ser, aliás, mais ousada. Tanto como a NFP foi no seu programa.

Sim, a França está numa situação difícil. A NFP ficou em primeiro e não tem maioria. Apesar de Macron achar que “ninguém ganhou”, a coligação presidencial também não a tinha e isso não a impediu de governar. Se os socialistas abandonassem a aliança vitoriosa, como lhes é pedido pelo Presidente, e recebessem o beijo da morte de Macron, voltariam ao lugar que os aproximou da extinção. Quem acredita que o PS deve ocupar o lugar de Macron para aplicar o seu programa neoliberal não percebeu o que aconteceu em França e na Europa. Ou percebeu, mas tenta vencer sempre, seja com extrema-direita, liberais ou socialistas. Se a NFP abraçar quem a fez crescer pela sua impopularidade, entregará a vitória a Le Pen em 2027.

O problema é a incompatibilidade programática com o Presidente. É com base nessa incompatibilidade que se faz a equiparação dos extremos. Quem a faz não vê apenas a democracia política como o chão comum em que os democratas se podem entender. Considera o liberalismo económico tão constitutivo da democracia, como o liberalismo político. Para não dizer que é mais. A equiparação da “esquerda radical” (em versão já alargada a muitos socialistas) à extrema-direita tenta desdemocratizar qualquer alternativa ao neo¬liberalismo. Ao retirar a economia da disputa no campo democrático, esvazia-se a própria democracia, dando argumentos aos seus inimigos. Uma das dificuldades apontadas à NFP é o conflito das suas propostas com as exigências comunitárias. Por causa das contas públicas? Macron levou a França a 5,5% de défice e a dívida pública a 111%. O limite não são números, é um programa político nunca sufragado e cristalizado pela UE.

Não é só a França que desmente a ideia de que para vencer a extrema-direita é preciso o sistema virar à direita. Keir Starmer recentrou os trabalhistas e não conquistou um voto aos conservadores. Os conservadores é que perderam para a extrema-direita, que teve quatro milhões de votos e 14%, que, graças ao sistema eleitoral, se resumiram a cinco deputados. O “desastroso” Jeremy Corbyn, eleito agora como independente contra o candidato trabalhista, teve em 2017, depois de apresentar o seu programa “radical”, mais três milhões de votos do que Starmer, no que foi a maior votação trabalhista de 1997 até hoje. Até no ocaso de Corbyn, em 2019, o Labour teve mais meio milhão do que agora. O único crescimento à esquerda foi dos Verdes. A deslocação dos dois grandes partidos para a direita não corresponde, olhando para os votos, a uma exigência eleitoral. E não impediu o mesmo que, apesar de todos os suspiros de alívio, aconteceu em França: o crescimento da extrema-direita.

Em França, a NFP conquista, segundo uma sondagem para a primeira volta, metade dos votos até os 24 anos (os macronistas nem aos 10% chegam) e 38% entre os 25 e os 35. No Reino Unido, os trabalhistas têm 40% dos votos até aos 24 e os Verdes 15%, enquanto os conservadores se ficam pelos 14%, os liberais pelos 10% e a extrema-direita pelos 8%. Andamos há meses a teorizar sobre o voto jovem na IL e no Chega e a explicação é simples: os jovens votam contra quem está, desde que se lembram, no poder. Porque, pelo menos na Europa, só varia o tempero. E os eleitores sentem-se bloqueados. Não pela política, mas pela sua ausência. Se não podem escolher o seu destino, é natural que escolham o protesto inconsequente. A TINA neoliberal é aliada da extrema-direita porque diz ao povo que no chão da democracia nada de essencial pode ser decidido.»


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