23.2.22

Para onde vai Putin?

 


«Tenho dificuldade em antever a ocupação de um território maior do que a Península Ibérica que faz fronteira com vários países da NATO e onde habitam 44 milhões de pessoas (mais de dois terços fortemente hostis). Por isso, uma das possibilidades que pus na segunda-feira foi a de Putin reconhecer a independência de Donetsk e Luhansk, onde existem tropas russas desde 2014. E, “a pedido do novo poder reconhecido, entrar no território”. Algo semelhante ao que já fez com a Ossétia do Sul e a Abecásia, na Geórgia, em 2008. A guerra iminente só não é iminente porque dura há oito anos e nela já morreram mais de 13 mil pessoas e centenas de milhares foram deslocadas.

No jogo preferido deste momento, que é caçar os que vacilam, deixo esclarecido o que penso sobre o assunto para passar para coisas mais interessantes: o reconhecimento da independência das duas províncias de Donbass, parcialmente ocupadas por separatistas com apoio militar russo, não cumpre qualquer regra do direito internacional. Uso a expressão de Vladimir Putin, aquando do reconhecimento ocidental da independência do Kosovo: “ilegal e imoral.”

A entrada oficial de militares russos como “forças de paz” (a guerra é arte da hipérbole e do eufemismo, em simultâneo) é uma invasão de território ucraniano – não falo dos acordos de Minsk porque eles são letra morta, de parte a parte, desde o momento em que foram assinados. É um ato de agressão militar típico de uma potência imperialista. No caso, um regime plutocrático e nacionalista de contornos fascizantes (este vídeo é um excelente retrato da tenebrosa figura).

Só um automatismo absurdo pode levar algumas pessoas de esquerda a pôr-se ao lado do maior financiador da extrema-direita europeia. Ou isso, ou o apoio à oposição comunista que, é bom recordar, propôs à Duma o reconhecimento da independência de Donetsk e de Luhansk. Recordar outros momentos da História em que outras potências tiveram comportamentos semelhantes será apenas recordar que o imperialismo é sempre uma forma de agressão. Não desvia do aqui e agora. Não o justifica. Não reduz a sua importância. Não há imperialismos bons, uma mão não lava a outra.

Nada disto diminui a complexidade deste momento. Como Putin é um líder que gosta de deixar tudo em aberto, não é fácil decifrar as suas motivações. Se elas são ou foram pressionar o Ocidente para travar o crescimento da NATO para as suas fronteiras, este passo, ao contrário da pressão que fez até ontem, joga a seu desfavor. Pode conquistar o Donbass para a Rússia mas afasta ainda mais a Ucrânia de uma posição neutral. E dá força ao nacionalismo ucraniano, aprofundando cada vez mais a clivagem com a Rússia. A “finlandização” da Ucrânia ficou ainda mais difícil.

Por outro lado, este gesto acaba por ser favorável aos Estados Unidos, únicos que estão a ganhar alguma coisa com isto. A suspensão da construção do NorthStream2, se fosse consequente (não punha todas as fichas nisso), não seria apenas um problema para a Europa, que precisa do gás russo. Seria um problema para a Rússia, que precisa de clientes – a China não chega. Para os EUA, a maior interdependência entre a Rússia e a Alemanha era indesejada, porque lhe retira importância estratégica. Mas, acima de tudo, Putin pôs a Europa, sem braço militar, mais dependente da NATO e dos EUA, que hoje só têm isso para lhe oferecer. Não se vislumbra o que a Rússia terá conseguido com isto, para além de ganhos internos que podem ser de curto prazo.

Podemos, claro, acompanhar Boris Johnson e concluir que Putin está a funcionar num “quadro mental de irracionalidade”. Afinal de contas, estamos perante um especialista. Só que não é esse o histórico de Putin. Ele sabe que uma guerra total na Ucrânia em cenário de duras sanções pode ter para o seu regime um efeito semelhante ao que a guerra do Afeganistão teve para o poder soviético, mas em pior. Também sabe que a ocupação da Ucrânia é uma impossibilidade prática.

Há quem vá mais longe e acredite que Putin quer mesmo restaurar o império soviético. É verdade que a sustentação ideológica do regime de Putin é, sempre foi, a “Grande Rússia”, revendo o desmantelamento imposto no fim de uma “guerra fria” sem armistício. Escreveu-o com todas as letras, a propósito da Ucrânia, num longo artigo com o sintomático título “Sobre a unidade histórica dos russos e ucranianos”, em que se dizia que a Ucrânia moderna ocupa terras russas, que se trata de “um só povo” e que “a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível em parceria com a Rússia”. Reiterou-o no seu discurso de segunda-feira. Mas é sempre importante distinguir a ideologia para consumo interno da prática. Putin é um nacionalista violento, mas um realista e um calculista. Gosta de manter todas as portas abertas e nunca entrar em becos sem saída.

Até ver, no jogo do gato e do rato, a única mudança relevante foi o reconhecimento da independência de Donetsk e de Luhansk. Mesmo o envio de militares, que até agora não aconteceu em larga escala (é provável que venha a acontecer), é fazer às claras o que a Rússia já fazia sem o reconhecer. Faz toda a diferença saber se Putin vai para lá das fronteiras reais entre o território controlado pelos separatistas russos e a Ucrânia ou se tenta ocupar toda a região que agora reconheceu como independente. Isso determinará um ponto mais ou menos perigoso.

Dizer isto não é dizer que as coisas não vão descambar. É dizer que se as coisas descambarem a Rússia é, depois da Ucrânia, quem tem mais a perder. Putin sabe-o. Por isso, mais importante do que descortinar o que ele quer, é perceber até onde está disposto a ir para o conseguir.

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