21.2.22

Há coisas que não vêm nos livros

 


«O anti-intelectualismo que tem grassado nos últimos anos é muito perigoso. Tem sido conduzido sobretudo por forças populistas e/ou da extrema-direita, com expressão na forma como a cultura, a ciência ou a educação vão sendo cada vez mais negligenciadas. É essencial a aposta no saber, no conhecimento, na formação do sentido crítico dos cidadãos. E aí, os livros, as artes, as escolas são decisivos.

Mas ter espírito crítico implica também perceber que os livros não são tudo. Mais: ler não pode ser sinónimo de desconsiderar as tradições orais, ou desprezar as formas culturais populares, informais, não institucionalizadas, que são tantas vezes decisivas numa melhor percepção do que nos rodeia. Esta semana ficou a saber-se através de um inquérito às práticas de consumo cultural dos portugueses (que contém vazios e conclusões que merecem complexificação) que 61% não leram nenhum livro em 2020. Um número que merece reflexão aprofundada.

Mas o que também merece questionamento é o comportamento de todos aqueles (das redes sociais, a órgãos de comunicação) que de imediato se digladiaram a ver quem é que lê mais, arvorando-se em portadores de grandes valores, como se ler fosse um distintivo civilizacional para usar ufanamente na lapela, desdenhando com arrogância de todos os outros.

Nem oito, nem 80. A leitura pode ser uma aventura sem fim, mas também não ser grande coisa. Ler, interpretar, ter uma atitude reflexiva e a humildade de querer conhecer mais nem sempre convergem. Temos muita informação, mas parece que cada vez sabemos menos, e acumulamos conhecimento técnico, como valor de uso competitivo no mercado, mas raramente o sabemos converter num tipo de saber que dialogue com a vida no sentido amplo. E é isso que tantas vezes faz falta.

Há pessoas iletradas com quem se aprende mais do que com qualquer livro. No meu caso, foi importante o tio Custódio, já falecido, pastor de ovelhas e de vacas. Com ele, em miúdo, aprendi qualquer coisa que nenhuma educação nos predispõe, através da sua forma desprendida de se procurar a si e aos outros. Qualquer coisa que está lá sem motivo aparente. Uma realidade que é, apenas: a permanência, o estar, o dar, o partilhar ou a mera contemplação do horizonte, que acaba por ser quase sempre uma forma de nos escutarmos a nós, ou para lá do limite de nós, o que ainda acaba por conter os contornos do que somos. Sentávamo-nos no cume de um monte. A planura a perder de vista. A cadela a arfar. E ele sacava do pão e partilhava-o, enquanto nos entretínhamos a analisar cores, deslocações, silhuetas, o movimento migratório das aves, luz e sombra. Parecia existir nele, naqueles momentos, uma sinergia entre perspectiva, pensar, trocas de experiências e saber.

Não parecia haver uma utilidade imediata, mas pensar para ele não era abstrair e não fazer. Era cogitar em conjunto para criar práticas que dialogassem com a vida com o propósito de cuidarmos melhor uns dos outros. Tão simples quanto isso. Se fosse hoje, à retórica do pragmatismo e da tecnicidade, ele oporia o gosto de compreender. Poder-se-á pensar que, tantos anos depois, me é fácil idealizar e poetizar a situação. Não creio. Hoje, aos olhos de muitos, o meu tio Custódio seria alguém sem grandes horizontes. Não conheceu muitos no sentido prático, é verdade. Não era viajado. Mas ter mundo não é ter milhas acumuladas, ter vivido longe, saber línguas, consumir à fartazana, conhecer as pessoas certas ou gozar com quem achamos que não tem mundo. Ter mundo, entendi com ele, é conseguir pôr-se no lugar de um outro. A partir daí, começa a possibilidade de entendimento do mundo. E isso não o aprendeu em nenhum livro.»

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