23.6.25

Um louco guia um cego para tentar repetir o Iraque

 


«Antes que a memória recente se perca, foi Israel que atacou o Irão, ao que se seguiu um ataque dos Estados Unidos, por ordem do mesmo presidente que pôs fim ao acordo de supervisão do programa nuclear do país atacado. Ache-se o que se achar do regime iraniano (imaginam o que acho de um regime teocrático que desrespeita os direitos das mulheres e reprime os opositores), é ele que se está a defender, não o oposto.

Logo depois de fazer um ataque que diz ter sido um sucesso, Trump disse que o poderia continuar, assumindo o que Israel já assumira: que o risco de o Irão ter armas nucleares não passou de um pretexto. Um pretexto para Netanyahu puxar Trump para uma guerra. Em Telavive, é claro que se quer derrubar o regime de Teerão sem saber o que vem depois, porque é no caos que Netanyahu sobrevive. Em Washington, cada um insinua coisas diferentes sobre os objetivos da intervenção.

Parafraseando Lídia Jorge, que citou Shakespeare: um louco guia um cego. O primeiro sabe que busca o que Bush procurou no Iraque. O segundo talvez acredite (acreditará?) que a sua intervenção foi mesmo por causa do risco de uma bomba nuclear e confirma o monumental falhanço da sua política externa: prometeu tirar os EUA de todas as guerras, mas não conseguiu dar um passo na direção da paz na Ucrânia e envolveu os EUA num confronto direto com o Irão, sem autorização do Congresso.

Em 1995, Netanyahu disse que, daí a três ou cinco anos, o Irão teria a bomba; em 1996, disse que o tempo se estava a esgotar; em 2006, que estava muito próximo; em 2012, faltavam seis meses; em 2015, estava a semanas; em 2018, faltava mesmo muito pouco tempo; em 2025, era daqui a poucos meses. E, no entanto, não temos qualquer evidência de que o Irão estivesse próximo de uma arma nuclear.

Trump até teve, para acompanhar a narrativa israelita, de dizer, na sexta-feira, que a diretora nacional de Inteligência, Tulsi Gabbard, estava errada ao sugerir que não havia provas de que o Irão estivesse a desenvolver uma arma nuclear. E teve de ignorar o diretor-geral da AIEA, que disse, na quarta-feira, que o relatório da AIEA foi deturpado e que não há "nenhuma prova de um esforço sistemático do Irão para conseguir a bomba atómica". Ontem, reiterou que não dispunha dos elementos necessários "para demonstrar que o Irão planeava desenvolver uma arma nuclear".

Estamos, é bom recordar, a falar de um país que foi atacado por outro, que, esse sim, tem armas nucleares à margem de qualquer tratado ou supervisão internacional. O que parece ser ignorado, apesar da agressividade, desrespeito sistemático pelo direito internacional e atual participação num genocídio de Israel.

Já vimos isto tudo. A assunção, contrariando a informação dos serviços de inteligência, da ameaça iminente de uma arma de destruição em massa. O ataque preventivo que o direito internacional não permite. A tentativa de mobilizar as opiniões públicas com a natureza ditatorial e atentatória aos direitos humanos do regime do país atacado, como se o novo regime sírio, cúmplice de Israel, não fosse liderado por um carniceiro vindo da Al-Qaeda e o maior aliado dos EUA na região não fosse a Arábia Saudita, que nega direitos às mulheres e ataca direitos humanos e liberdades cívicas. A promessa de reinvenção do Médio Oriente, ignorando as consequências destas aventuras. Os delírios de mudar um regime através de uma ofensiva externa, sem fazer ideia de quem sejam os sucessores e que dinâmicas internas serão libertadas. Visto daqui, a utilização da Base das Lajes é a cereja em cima do bolo no déjà vu iraquiano.

A intervenção no Iraque foi responsável por um número ainda indeterminado de mortos, mas que andará pelas centenas de milhares. Foi responsável por um vácuo de poder, lutas sectárias e uma desestabilização que levou ao nascimento e crescimento do Estado Islâmico, que acabaria por transbordar para a mortífera guerra da Síria que, por sua vez, levaria a mais umas centenas de milhares de mortos e estaria na origem da onda migratória que atingiu a Europa e fez crescer a extrema-direita. Na altura, não faltou quem explicasse que a queda da primeira peça do dominó faria cair as seguintes, encaminhando a região para a democracia. Encaminhou-a para o caos, como os que se opuseram à guerra previam.

Agora, um homem que foge do seu próprio destino (a prisão) acredita que pode moldar toda a região aos seus próprios interesses, prendendo a maior potência do mundo e a paz internacional à sua infinita arrogância. E o mundo parece estar disposto a permiti-lo.

Mesmo sendo esta aventura liderada por dois irresponsáveis encartados, um deles com um longo currículo de crimes de guerra e contra a humanidade, vejo os mesmos que deixaram cair uma lágrima furtiva quando viram os tanques americanos chegar a Bagdad a recuperarem a superioridade moral de quem não aprendeu nada com a história. Até estou à espera das mesmas acusações de apaziguamento e cumplicidade com tiranias que então se ouviram.

Só que o Irão não é o Iraque. É uma sociedade muito mais consolidada, uma civilização milenar, uma potência regional e um território impossível de invadir que controla o estreito de Ormuz, por onde circula 20% do abastecimento global de energia. As caricaturas de um regime que, sendo ditatorial, corresponde a uma sociedade e uma realidade política bastante mais complexas e contraditórias do que eram as do Iraque explicam a leviandade com que se está a abrir esta Caixa de Pandora.

Trágico é ver o mundo depender de os líderes da maior teocracia do mundo não retaliarem (como teriam legitimidade para fazer) e não aprenderem nada com estes dias. Se aprenderam, concluirão que, se continuarem a negociar com uma administração que não mantém a mesma palavra durante 24 horas, continuarão a ser atacados enquanto o mundo exige que se sentem na mesa de negociações de que nunca saíram, e que o melhor a fazer para a sua defesa é terem mesmo a arma nuclear. A tragédia desta ação é explicar ao Irão que o melhor para eles é o pior para todos.»


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