11.1.11

«Era uma vez um pintor que havia em Moçambique» - Um texto de DIANA ANDRINGA


Quando Moçambique se despede de Malangatana, um texto de Diana Andringa, incluído no Catálogo da Exposição «Novos Sonhos a Preto e Branco», aberta ao público até 23 de Janeiro, na Casa da Cerca - Centro de Arte Contemporânea, em Almada.


Conheci o Malangatana muitos anos antes de o conhecer.

“Era uma vez um pintor que havia em Moçambique e cujos quadros fotografavam coisas que sabíamos que eram África, mesmo que nunca tivéssemos estado em África...”

E mais uma coisa: “Esse pintor, sabes? Esse pintor é negro.”

Bem que desconfiara, eu, ao olhar os quadros. Mas duvidando: Moçambique não era, então, uma terra que desse a negros a possibilidade de se tornarem pintores.

Era mais comum serem exactamente aquilo que ele foi: babá de meninos, apanhador de bolas, aprendiz de curandeiro... Aprendiz de curandeiro? É isso que explica aquelas formas estranhas entre as pessoas comuns que povoam os quadros?

Não conhecia Malangatana, não conhecia Moçambique, mas aqueles quadros eram-me familiares. Aquelas caras que me olhavam, aqueles olhos onde perpassava medo, susto, dor, mas também – mas sobretudo? – dignidade. E espanto: um espanto de recusar que o Mundo pudesse ser assim, como de facto era.

Espanto igual o meu: e onde, nesse Mundo, nesse Moçambique onde negro, se acaso cidadão – ou seja, não indígena, “assimilado” – o era sempre de segunda classe, fora Malangatana buscar essa capacidade de pintar?

No Catálogo de uma exposição organizada em 1961 – tinha Malangatana uns 25 anos – pelo Núcleo de Arte de Lourenço Marques, Pancho Guedes, depois de referir que os quadros apresentados eram “resultado de pouco mais de um ano e meio de trabalho de ex-criado de bar”, escrevia:

“Malangatana é um pintor natural, completo, nele a composição, a harmonia de cores, não é jogo intelectual: acontece-lhe, tão naturalmente como as histórias e as visões.

Ele sabe sem saber. (...)

Ele é visitado por espíritos; certos quadros são alucinações, fragmentos de um inferno que já foi de Bosh.

Malangatana tem um conhecimento profundo das razões subterrâneas dos homens, o que aliado à sua extraordinária visão formal, produz pintura de uma totalidade tão rara que apesar de ele ser um principiante já é um dos primeiros pintores de África.”


Um olhar que tão bem retratava a realidade em seu redor não podia deixar de ser subversivo. Pelo menos tanto como as palavras dos poetas e contistas: em 1964, Malangatana é preso com Rui Nogar, José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana. Prisão que contou em quadros e poemas, bem como o julgamento, de que saiu absolvido.

Eu continuava a ouvir falar de Malangatana. De um modo talvez injusto para outros, ele era “o pintor de Moçambique” – como Flora Gomes é “o cineasta da Guiné”, embora em ambos os casos haja outros a merecer referência.

Passaram-se, no entanto, muitos anos antes que viesse a conhecer o pintor. Quando finalmente o encontrei, lembrou-me o gato de Cheshire, aquele que está e não está simultaneamente e se materializa onde menos se espera. Numa refeição em conjunto, julguei-o adormecido, para logo a seguir ser surpreendida por um dito que o mostrava profundamente acordado. Depois, como as crianças, impacientou-se e foi até ao jardim – de onde regressou a cantar em ronga. Por duas ou três vezes, fechando os olhos, estremeceu o corpo imenso, lembrando uma vez mais a capacidade espreguiçosa de um gato.

Mais tarde, no Barreiro, vi-o pintar com lápis sobre pedra, enquanto o canteiro Firmino gravava, sobre brancas pedras de mármore, os traços que desenhara para o monumento que destinara à Praça da Amizade. E assisti ao efeito dos seus quadros sobre aqueles que, curiosos, entravam no espaço onde trabalhavam, se aproximavam do fundo e ficavam a vê-lo, sabedores de que quem pintava era um grande pintor de Moçambique e talvez surpreendidos com a simplicidade com que os recebia, a afabilidade das suas respostas.

Como essa jovem que, contou Firmino, entrou no matadouro reconvertido em atelier e se acocorou junto a uma das pedras, os olhos longamente presos na figura de uma mulher. Surpreendido, o canteiro apercebeu-se de que a jovem chorava: “Esta mulher diz-me muito”, esclareceu-o a jovem. “Eu também sofri, como ela.” Não saberemos o que a fez sofrer, mas sabemo-la próxima dessa mulher criada por alguém vindo de muito longe, de um outro povo e uma outra cultura.

São comentários como este que Malangatana prefere: “Daqueles que pensam que não sabem, mas sabem, e às vezes fazem comentários muito mais sábios do que os outros.”

Como aquela mulher moçambicana que olhou uma pintura dele e disse: “Este quadro aqui parece os feiticeiros de um lugar que não é longe, mas era uma floresta impenetrável.” “E”, sublinha Malangatana, “é um sítio que de minha casa diziam: ‘É ali!’, era perto mas era longe, e quem se atrevia a passar encontrava restos de galinhas, ossos, e só podia ser de quem estava convicto que ali se poderia adquirir poder e força. E ela disse isso e era o título que eu tinha!”

A mesma mulher disse-lhe também, dirigindo-se-lhe em ronga: “Tu consegues desenhar bem as mulheres. Tratas as nádegas das mulheres com muito respeito!”

Malangatana recebe os comentários como quem abre, de par em par, a porta de sua casa. Um dia explicou, num dos poemas que também escreve: “A minha morada/ Onde habito/ Os caminhos estão largos/ Tão largos como a alma de uma flor.”

E é Brassens que surge, espontânea e ignoradamente, na voz de uma mulher que comenta: “Não percebo nada de arte, mas estes quadros aquecem-me o coração!”

Também eu percebo pouco de arte, mas foi um quadro de Malangatana que me ocorreu, comovidamente, ao ver a imagem dos meninos da minha Lunda natal, sentados muito juntos, à porta de uma casa onde um homem – um “mais velho” – cantava, acompanhando-se à viola, uma canção em tchokwé.

E é a minha infância, o desconforto de testemunhar, diariamente, incompreendendo, a injustiça do colonialismo, que Malangatana me devolve quando, num debate, lembra a sua própria infância, o Moçambique colonial, a sua aldeia, os seus tempos de babá e de apanhador de bolas. Tranquilo, confortável, familiar, sem que na voz se note o mínimo traço de ódio: apenas um sotaque momentaneamente mais acentuado. E, no entanto, é evidente que não esqueceu nada desses tempos, que o passado o habita, o passado colonial mas também o das crenças dos seus antepassados, que gosta de referir.

Não, não sei se Malangatana é visitado pelos espíritos: mas estou certa de que sim, conhece as razões subterrâneas dos homens. E que sabe sem saber, numa sageza antiga que é, quando o olhamos, a maior de todas as sabedorias.

E tudo isso perpassa nos seus quadros, a infância, a terra, o medo, a dor, o espanto, a ternura, o erotismo, o assustador aparecimento daquilo que não sabemos explicar. E, acima de tudo, esse olhar novo e espantado sobre o Mundo, tão claro, tão inteligente, tão interrogativo, como são sempre os olhos das crianças.
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