10.10.20

De onde vem tanta raiva?

 


«Pode haver sociedades com absoluto consenso, em que todos “remam para o mesmo lado”, em que todos os conflitos são sanáveis? A resposta é um claro não, não há sociedades sem divisões, mais ou menos agudas, mais ou menos conflituais. O que não existe é um estado “zero” de conflitualidade nem mesmo à força, nem nas democracias, nem nas ditaduras, nem na anarquia, nem na teocracia, nem no comunismo nem na mais pacífica, civilizada, ordeira, moderada, social-democracia. A única verdadeira TINA (there is no alternative) é esta, o resto são ficções políticas legitimadoras, ou subprodutos disfarçados de inevitabilidade. A questão não está em não existirem conflitos, está em saber como é que se formam os ciclos de conflito, e como é que eles se tornam numa tempestade perfeita, que é o que se está a passar nos dias de hoje. É isso compatível com a democracia, em que o voto é suposto dirimir todos os conflitos, ou pelo menos mitigá-los? É, de forma imperfeita, mas é. Mas o espaço para a democracia alarga ou encolhe conforme os tempos, e agora está a encolher, e não encolhe sempre da mesma maneira. 

A outra TINA, que está por detrás da primeira, foi identificada por Marx, e repetida e analisada por muitos outros teóricos, longe de serem marxistas, e tem a ver com a desigualdade e os mecanismos da desigualdade – uns têm e outros não, seja de forma física, material ou simbólica, ou quase sempre combinando as duas, primeiro a primeira, depois a segunda. Porém, se sabemos isto há muito tempo, não chega, porque os mecanismos que “ferem” os indivíduos e os levam ao sentimento da desigualdade, agudizando o ressentimento e provocando a revolta, mudam com o tempo e manifestam-se de formas diversas. 

No mais importante laboratório social do mundo, os EUA de Trump (o outro é o capitalismo na China gerido por um partido comunista), está a emergir com clareza um outro padrão de divisão que se tem agudizado nos últimos tempos. O que faz a raiva, literalmente raiva, da “base” de Trump, reproduzida de forma menos perfeita pelos partidos populistas europeus? Uma das coisas, não a única, mas uma das mais poderosas como geradora de ressentimento, é a percepção de muitos trabalhadores fabris de que é o seu trabalho que suporta a sociedade, e não tem o reconhecimento que lhes é devido, não apenas em termos salariais, mas em termos de prestígio social, daquilo que antes se chamava a “dignidade”. Os culpados são os “políticos” e todos aqueles a quem um diploma traz um título apenso, que os coloca na elite. 

Quando Hillary Clinton os chamou de “deploráveis”, num excelente exemplo de como uma única frase pode destruir uma campanha, transformou-os numa coisa que até então não existia: a “base” de Trump. Deu-lhes identidade. Foi para essa “base” que Trump subiu à varanda da Casa Branca imitando à letra Benito Mussolini a fazer de imperador romano, com ar de mau e face de bronze. Mesmo que Trump perca as eleições, essa “base” vai continuar a mudar a política americana e não é num sentido muito democrático. 

A fractura eleitoral mais aguda nos EUA nas eleições de 2020 é a que separa os eleitores brancos sem escolaridade de todos os outros. Para os “deploráveis”, há aqui duas perdas: ser branco e já não ter os privilégios de o ser, face aos negros, aos latinos e a todos os “não americanos”; e ser trabalhador manual, não ter um diploma e por isso ser marginal na sociedade, estar fora da elite. Sendo assim, a escolaridade tornou-se hoje mais do que um factor instrumental no acesso ao emprego e no valor do salário, mas no local onde passa uma fractura social entre os que têm e os que sentem que não têm ou não têm mesmo. 

Parece irónico escrever-se isto em Portugal quando por todo o lado se repete o lugar-comum da “geração mais bem preparada”, num país onde os fenómenos populistas também crescem com os mesmos mecanismos de ressentimento antielitista. A questão é que o diploma sem as vantagens económicas e sociais está longe de ser percebido como um diploma, pelo que tê-lo é a mesma coisa ou pior do que não tê-lo, e não esbate o sentimento de que na sociedade são eles que fazem todo o trabalho duro e não uma elite com o “dr.” antes. Nós desprezamo-los mesmo inconscientemente, eles respondem-nos à letra. 

O lubrificante deste ressentimento são as redes sociais, porque dão um meio de expressão e contacto para tod.os aqueles que se sentem excluídos do discurso respeitável e encartado. A ignorância agressiva que pulula nas redes, o desprezo pelo saber profissional e pelas hierarquias assentes no conhecimento, cujos efeitos vão desde a disseminação das terias conspirativas até aos comportamentos anticientíficos, é impulsionado pelo igualitarismo das redes sociais: porque eu posso escrever aqui o que quiser, o que eu digo tem o mesmo valor de tudo o resto, diga ou não a verdade, tenha ou não fontes fiáveis, tenha ou não algum conhecimento sobre aquilo que escrevo. Sem a tribalização da verdade, a perda do valor dos factos, a indiferença pela realidade objectiva, não haveria a “base” trumpiana e os seus émulos nacionais. E este estado de coisas agravou-se pela cobardia de quem devia defrontar a mentira e a opinião comum e circulante cara a cara e tem medo de ter a matilha das redes sociais atrás de si. E por isso se dobram, de políticos a jornalistas.» 

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