2.10.20

Direito à indignação

 


«Foi Mário Soares quem cunhou esta expressão provocatória: o direito à indignação! 

Um "direito" que exprime o escândalo perante a indignidade, a falta de respeito, contra a violação inaceitável das regras elementares da convivência humana, a reação sentida e legítima contra uma ofensa insuportável. Mário Soares sempre foi assim ao longo de toda a vida, até para desautorizar o seu primeiro-ministro, Cavaco Silva, em Março de 1995, no pleno exercício das funções de presidente da República! Vem isto a propósito da polissemia da expressão, "dignidade humana", e da sua importância e atualidade. 

Esta pandemia que não sabemos ainda por quanto mais tempo nos vai atormentar expôs com flagrante nitidez velhos problemas que tardamos em reconhecer e enfrentar, como as desigualdades crescentes que romperam a coesão das sociedades e a crescente vulnerabilidade dos velhos estados soberanos no contexto da desregulação internacional que enfraqueceu a autoridade democrática num mundo desregulado, ameaçado pelas alterações climáticas e pela proliferação anárquica de conflitos armados. 

Vivemos um tempo de ansiedade e de incerteza. Aquilo que ainda há poucos anos se acreditava serem valores essenciais e irrenunciáveis tornou-se objeto do tráfico venal entre interesses instalados que já nem tentam ocultar o mais despudorado oportunismo. Significativamente, o debate entre os dois candidatos às eleições presidenciais nos Estados Unidos da América que ocorreu na madrugada desta quarta-feira ofereceu-nos o mais deplorável espetáculo do estado lamentável em que se encontra o planeta e a mais poderosa potência que sobreviveu à Guerra Fria. Nem o moderadíssimo candidato democrata, Joe Biden, conseguiu manter uma postura de estado, séria e impassível, face à diarreia verbal do seu opositor e atual presidente, Donald Trump. 

A pandemia que paralisou por longos meses a economia mundial revelou também o lado mais trágico da miséria que alimenta o opulência dos mais ricos. Desde os camponeses da Índia aos americanos do Norte e do Sul, aos lares de idosos da Suécia ou aos bairros mais pobres de Madrid, o vírus atuou de forma metódica, coerente, letal. Dos que sobreviverem, muitos vão enfrentar o desemprego ou a insolvência mas muitos outros sobrarão para alimentar a fome insaciável da máquina de fazer dinheiro. O que farão os governos, os partidos, os representantes eleitos? O conceito de dignidade humana atingiu hoje um patamar incompatível com a indiferença perante o absurdo de tamanhas desigualdades. Não há liberdade sem igualdade e é o escândalo perante tal indiferença que alimenta a extrema-direita populista e autocrática. Só na relação entre seres de igual dignidade é que a liberdade se torna um bem estimável, valioso e carente de proteção.» 

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