28.11.20

Nós, heróis da preguiça...

 


«A autoridade governamental da Alemanha para a saúde pública fez recentemente uma campanha, exortando os jovens a ficar em casa, difundindo um vídeo que tem circulado com grande sucesso no mundo inteiro. Nele, surge um actor de idade avançada, falando do modo como viveu, no Inverno de 2020, quando era jovem, uma segunda vaga da pandemia de Covid-19. Ele situa-se, portanto, num tempo projectado no futuro e é a partir desse lugar que dá o seu testemunho: naquele tempo já longínquo de 2020, quando tinha 22 anos e era estudante de engenharia em Chemnitz, comportou-se como um herói, num momento em que o destino do país “estava nas nossas mãos”. O seu heroísmo consistiu em cumprir escrupulosamente esta regra: “a única coisa a fazer era ... NADA” (transcrevo assim, com as reticências, um momento de suspensão da fala, a preparação para pronunciar um “nada” enfático). Dá-se então um corte, muda-se de plano, e vemos um jovem entregue à preguiça, estendido num sofá e a beber refrigerantes. 

O apelo à preguiça, à coragem heróica de não fazer nada, é coisa estranha num país como a Alemanha. Parece o mundo às avessas. Podemos ver neste vídeo um sinal de que há coisas que nunca mais serão como dantes. E uma delas é provavelmente o fim da economia, ou melhor, do processo de colonização que ela exerceu no espírito mais profundo da nossa época e que nos fazia ver tudo sob o prisma da economia. É verdade que o fim da economia já tinha sido anunciada por quem, deslocando-se para uma escala infra-económica, tinha tirado lições muito categóricas da esquizofrenia generalizada que caracteriza o capitalismo contemporâneo e tinha percebido que a própria economia se vira contra si própria. 

Já não conseguimos ouvir com reverência, nem sequer com paciência, as previsões de crescimento económico e outros dados quantificados até às décimas para o próximo ano. “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, proclamou Valéry num célebre texto sobre a “crise do espírito” escrito no final da Primeira Guerra Mundial. Agora, depois de termos assistido a uma impensável e impensada interrupção do funcionamento da economia, e quando até no país de Max Weber se fazem apelos à preguiça ambiguamente irónicos (porque se fossem para ser interpretados de maneira completamente literal não seriam levados a sério), toda a fé no edifício do homo oeconomicus sofreu um abalo que torna muita coisa, neste plano, irreversível. Mesmo que tudo, no domínio económico, se recomponha (e não há dúvidas de que muito está a ser feito para isso, até porque era mais fácil ser anti-capitalista antes desta crise do que agora), a nossa fé entrou em colapso: nós, filhos e netos das relações económicas, sabemos agora que em qualquer momento sobrevêm outras determinações, fazendo ruir o belo edifício e as suas representações ideológicas porque todos percebemos que há algo errado na economia, mesmo se a nossa vontade é a de restaurar a ordem regida por ela. 

Há domínios em que a descrença instalada ou em vias de instalação não provoca perigos imediatos. Mas quando assistimos a uma escalada, às claras, sem qualquer pudor, de um modelo de ciência empresarial, como está a acontecer com as vacinas contra o novo coronavírus, há boas razões para ficarmos não apenas desencantados, mas também assustados. Quem não sabia já, ficou agora a saber o que é a luta pela conquista do mercado pela indústria farmacêutica. Temos assistido a um espectáculo nunca visto (não porque não estivesse em cena, mas porque os seus palcos estavam mais escondidos) da captura e da instrumentalização da ciência para fins económicos e políticos. Médicos e cientistas convertidos ao populismo, reivindicando a condição de “stars”, lutas pela autoridade científica através de meios alheios às regras do campo científico: a par do populismo político, de que tanto se fala, há outros populismos que não atraem tanto a atenção, tais como o populismo médico, o populismo científico (uma contradição nos termos) e um populismo mediático que está tão normalizado que já nem o nomeamos. Nós, leigos e mortais, sabemos agora que é quase impossível organizar uma discussão racional.» 



António Guerreiro
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1 comments:

susskind disse...

Um estudante de engenharia 22 anos várias semanas em casa significa ficar sem fazer nada? Comer pipocas e ficar de boca aberta em frente do écran que desfila netflix...
Ao contrário do que parece, alusão subliminar à ética protestante do trbalho, não é de todo o mundo ao contrário; antes é o corolário de uma certa visão do mundo: não és nada senão o teu posto e a tua força de trabalho. Que lindo! O outro que falava de alienação já saberia porquê.