«Os políticos fazem campanhas em poesia e governam em prosa”, disse Mario Cuomo, ex-governador do Estado de Nova Iorque. Depois de andar, antes das eleições, em programas de entretenimento da tarde, Luís Montenegro dá finalmente a conhecer o seu verdadeiro programa de Governo. E ele representa a radicalização ideológica do PSD. Na imigração, nos apoios sociais aos mais desfavorecidos, na legislação laboral, no futuro do SNS.
Esta é a primeira leitura política de um documento que revela um plano enfiado na gaveta durante a campanha: Montenegro olhou para a composição do Parlamento e, para lá dos contos de embalar sobre o papel estrutural do PS, vai aproveitar o peso esmagador da direita para fazer o que nunca foi feito. Com os socialistas presos pelos colarinhos de uma suposta “moderação”, sente que pode ir até onde nunca foi.
Sobre o que mudou em relação ao programa eleitoral, o Vítor Matos já fez a comparação, nas páginas do Expresso. Flexibilização da legislação laboral; mudança da lei da greve; revisão da Lei de Bases da Saúde; 2% do PIB para a Defesa já em 2025, e não 2029. Há todo um mundo novo escondido até 18 de maio. Não é preciso ser especialmente atento para perceber que as áreas em que o Governo agora promete agir, e sobre as quais esteve calado na campanha, são onde sente ter o apoio das bancadas à sua direita.
Luis Montenegro conta com o PS para aprovar os orçamentos e com as bancadas à sua direita para mudar estruturalmente o país. Onde conta, e conta muito no programa mais ideológico de que há memória, o Governo espera ter o apoio do Chega e da IL. É por isso que todas as novidades do programa são em matérias que Montenegro sabe que o PS não pode apoiar. Metade delas, de resto, são para reverter medidas dos governos de António Costa. A reversão da laboralização das plataformas digitais ou a revisão da Lei de Bases da Saúde são apenas dois casos explícitos.
No tom e nas medidas, também temos largas cedências ao Chega. Não apenas nas anunciadas restrições ao reagrupamento familiar dos imigrantes (ao mesmo tempo que estuda a revitalização dos vistos gold), mas também na alteração dos mecanismos de apoio social aos mais vulneráveis. Quanto às primeiras, já aqui escrevi sobre o cinismo dos que, passando o tempo a dizer que não são contra a imigração desde que haja condições para integrar, abrem guerra ao mais poderoso instrumento de integração. Quanto à segunda, o governo quer que o Rendimento Social de Inserção passe a exigir “obrigações de solidariedade” – trabalho não remunerado. Estamos a falar de uma prestação que, em média, não passa dos 324 euros.
Esta conversa não começou com o Chega. A diferença é que, na campanha de 2009, quando Paulo Portas fazia as mesmas propostas e usava os mesmos termos num frente a frente com Manuela Ferreira Leite, a líder do PSD recusava-se a aceitar as suas premissas. Não o fazia com base em argumentos ideológicos ou na avaliação positiva que estas políticas públicas têm tido na diminuição do abandono escolar e na taxa de pobreza. Fazia-o em nome da dignidade humana e da decência. Por onde anda essa direita?
Mas o alvo não são apenas mais pobres e vulneráveis. Na Saúde, a palavra de ordem é “complementaridade entre público, social e privado”, sendo que, para cada problema identificado, a solução passa sempre pelo “reforço de parcerias que ampliam a capacidade de resposta”. É para esta nova visão do SNS, reforçando ainda mais a sua dependência da iniciativa privada que acaba por financiar, que o Governo quer mudar a Lei de Bases. O resultado dessas parcerias, como no modelo C das Unidades de Saúde Familiar (as que podem ser geridas por privados), é bastante simples: a versão preliminar do seu regulamento, avançada ainda pelo primeiro governo de Montenegro, permite a estas unidades públicas geridas por privados escolher os utentes que pretendem. Enquanto vão buscar os médicos de família às USF públicas. O privado terá o dinheiro do público para continuar a sua expansão, e investimento pesado na área hospitalar, com o público a assumir os tratamentos dispendiosos e que os privados não querem assumir.
A alteração à lei da greve, para a limitar e condicionar ao “equilíbrio de interesses sociais”, é um modelo exemplar do cinismo na política. Ao longo dos últimos anos, com o PS no poder, o PSD apoiou ativamente os dois protestos que esticaram para lá de todos os limites o conceito de greve: a greve “cirúrgica” dos enfermeiros, liderada pela bastonária do PSD, e as greves “self-service” dos professores, convocada pelo STOP. No primeiro caso, a greve foi considerada ilegal pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República. Com o PS no poder, não havia qualquer preocupação com a defesa dos tais “interesses sociais” numa greve selvagem e ilegal, como a dos enfermeiros, que levou ao cancelamento de milhares de cirurgias.
O Governo avança nas áreas onde a direita nunca sentiu força para agir porque sabe ter o apoio do Chega e da IL no que é mais ideológico, das áreas sociais e dos direitos laborais. No que importa, portanto. A questão é saber que papel aceita ter o PS. Carlos César sinalizou que o partido terá de “ser mais oposição do que já prevíamos.”José Luís Carneiro criticou a diferença entre o que foi apresentado na campanha e o que agora surge. O pior que pode acontecer ao Partido Socialista é ser o pronto-socorro do Governo, quando este não se conseguir entender com os seus parceiros preferenciais para a mudança estrutural do país, aprovando os orçamentos e o que o Chega cheirar ser impopular.
Perante este programa, a esquerda tem de se recompor do estado de depressão em que ficou depois de 18 de maio, ignorar os conselhos da direita para que vá para um retiro de reflexão enquanto ela fica de mãos livres e começar a preparar a reação a esta guinada sem paralelo.
Porque, se essa viragem para a direita levar o PS no “lugar do morto”, quem se arrisca a falecer politicamente é mesmo o PS. Um programa eleitoral não é apenas um conjunto de medidas. É uma visão do país suportada por um discurso. O que este documento nos diz, ao olhar para as novidades que nos foram escondidas durante a campanha, é que o discurso político vai endurecer e suportar-se num sem-número de falsidades sobre os imigrantes, os beneficiários de apoios sociais e os direitos dos trabalhadores. Não é apenas discurso. Molda perceções e cria maiorias sociológicas.
Se o PS se resigna a ser ajudante da governação, esta deriva para a direita não vai ficar por aqui. E a sua decadência eleitoral também não.»
1 comments:
Resumindo, o autor quer uma frente popular à sombra de um qualquer Mélenchon de vão de escada. Em Outubro, depois do que parece vir aí nas autárquicas, uma derrota ainda maior que nas legislativas, acalmam.
Pelo que percebo o leitmotiv da "narrativa" agora é "isto não estava no programa, andaram a enganar". Como se ninguém soubesse que um programa eleitoral é apenas publicidade vaga.
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