21.6.25

O outro wokismo: o da reacção

 


«A chamada "ideologia woke", cujo conteúdo e, principalmente, fronteiras são difíceis de definir, foi um dos lados da guerra cultural que uma parte da esquerda e de um certo radicalismo de “causas fracturantes” perdeu. O alcance e o significado dessa derrota tiveram enormes consequências políticas em todas as democracias e são uma das chaves para explicar o ascenso da direita radical. Em todos os lados, a começar pelos EUA e a acabar em Portugal, o wokismo fragilizou a componente social do combate político a favor de radicalismos culturais e intelectuais sem base de sustentação na sociedade a não ser em certos meios de elite. A expressão pejorativa do “radical chic” traduz bem o público do wokismo, que, partindo de lutas justas pela igualdade plena entre homens e mulheres, pelo fim da discriminação dos homossexuais e lésbicas e contra o racismo – tudo coisas mais que necessárias na sociedade portuguesa –, lhe deu uma componente censória, de policiamento da linguagem, de superioridade moral de formas de vida, e de agressividade intelectual. O resultado foi isolar e enfraquecer tudo o que havia de justo nos combates pela igualdade e contra a discriminação, e abrir caminho para uma reacção que rapidamente ganhou terreno assente em forças mais poderosas, que a menorização das lutas sociais pela moda do radical chic facilitou. A ideia de que era possível mobilizar alguém por uma sopa de letras LGBTQIA+ é absurda e o resultado é que o todos derrotou o “todes”.

Mas não há apenas um wokismo, há outro, reaccionário, de direita radical, assente numa mescla entre a “tradição”, o machismo, o conservadorismo dos costumes, a ideologia da “família natural”, o anti-intelectualismo, a ignorância agressiva e um conjunto de ideias sobre o catolicismo integrista, raça, história e sobre aquilo a que chamam “portugalidade” sem nenhuma sustentação histórica. Na verdade, aqui a classificação mais frágil é a do catolicismo, porque este wokismo é muito pouco católico, embora também em matéria de costumes a prática não acompanha a retórica.

O wokismo chamemos-lhe “revolucionário” fortaleceu o wokismo “reaccionário”. O termo “revolucionário” não é grande coisa para designar o primeiro wokismo, o termo “reaccionário” é melhor para o segundo wokismo. Não tem sentido designar um como de esquerda e o outro como de direita, porque há muita gente de esquerda bastante reaccionária em matérias de costumes, de visão do mundo e de praticamente todos os sinais do wokismo de direita. Uma coisa é certa, a ascensão de formas de expressão públicas não moderadas, que se estão a substituir ao trabalho jornalístico como fonte de “notícias”, as chamadas "redes sociais", é o terreno para o crescimento e a divulgação do wokismo reaccionário. A sua ecologia natural é a de um mundo dominado pelo pathos, sem logos, e toda a evolução do contínuo político-mediático, reduzindo a autonomia do político e favorecendo o banho das emoções que alimenta um país do Big Brother. Dos dois, o dos reality shows e o de Orwell, porque há gente muito capaz, serviços de informação, grupos políticos disfarçados de hackers, agências de comunicação, que sabem muito bem como este mundo é fácil de manipular, seja para votar em Trump, seja para atacar o restaurante da competição.

Uma das componentes do wokismo reaccionário é o machismo, com o seu cortejo de bravado masculino, a sua violência doméstica, a sua relação com a ideologia da “família natural” com o seu “chefe de família”, a quem se permite tudo no plano sexual que é crime e escândalo nas mulheres, e a sua identificação com os forcados a fazerem peito diante de um touro imaginário. O machismo comunica com tudo, com a superioridade do “homem branco”, a inferiorização das mulheres em casa e no trabalho, a sua “natural” domesticidade. Andei anos a chamar a atenção, sem sucesso, para um dos retrocessos civilizacionais dos anos do Governo de Passos-Portas-troika, o despedimento prioritário das mulheres nas zonas têxteis e do calçado, em que se sai operária e se regressa doméstica. O machismo do homem branco é também um elemento que comunica com a demonização do “outro”, em particular se o “outro” tem outra cor e outra religião.

Para outra altura fica a questão da “portugalidade” no wokismo reaccionário, o “patriotismo” fictício que manipula a nossa história com as ideias que fizeram a “identidade nacional” no período do Estado Novo, escondendo n'Os Lusíadas as palavras sábias do Velho do Restelo a favor de uma interpretação da bazófia nacional que tem como modelo o futebol com a bandeira dos pagodes em vez dos castelos.

Algumas componentes do wokismo reaccionário têm a força de um país com mais maus costumes do que se pensa. O sucesso do wokismo reaccionário vem de factores estruturais que estão muito para lá das modas culturais que alimentam o outro wokismo. Para lhe tirar força não basta travar qualquer guerra cultural, há que mudar Portugal.

Veja-se lá o que é preciso: mudar Portugal. Estamos bem arranjados.»


1 comments:

Fenix disse...

O "Wokismo" enquanto termo político que se refere a uma percepção e consciência das questões relativas à justiça social e racial, que poderá e, concordo, ter exagerado em certos "policiamentos"/ "cancelamentos", mesmo assim, não me parece razoável arranjar-lhe agora um contraponto à Direita reaccionária, que sempre existiu, e ela sim originou o "Wokismo".

Continua-se sempre a branquear o machismo, o racismo, etc., colocando sempre estes "ismos" em contraponto...