22.2.23

Volta para a tua terra: o exemplo de Get Back dos Beatles

 


«Poucos saberão que o “volta para a tua terra” tão caro à extrema-direita (e aos que com ela namoram) poderia ser a melhor tradução para Get Back dos Beatles, editado em single, em Abril de 1969, e incluído no álbum Let it Be, em 1970. Chegou a chamar-se No Pakistanis e o objetivo era ridicularizar o discurso anti-imigração que proliferava na Grã-Bretanha da altura.

A inspiração proveio do discurso “Rivers of Blood” (Rios de Sangue) proferido pelo parlamentar inglês Enoch Powell, num encontro do Partido Conservador, em Birmigham, a 20 de Abril de 1968. Powell afirmou que os ingleses brancos deixariam de ter emprego, leito no hospital ou lugar na escola para os filhos por causa do número crescente de imigrantes, cujo modo de vida lhes era estranho. Os imigrantes iriam conduzir o Reino Unido ao caos e à guerra social e fazer correr sangue. Sem esquecer o seu comprometimento com uma visão de superioridade da cultura ocidental, Powell recorreu a uma passagem do livro VI da Eneida de Vergílio, em que uma profecia da Sibila de Cumas fala do “Tibre a espumar com muito sangue”. Powell pretendia impedir o Race Relations Act (Projeto de Lei de Relações Raciais) que o parlamento viria a aprovar e tinha o apoio do governo trabalhista de Harold Wilson.

Get Back surgiu numa jam session dos Beatles, nos Twickenham Studios, em Janeiro de 1969, e Paul McCartney resolveu usar uma passagem da letra de Sour Milk Sea de George Harrisson, que tinha sido gravado por Jackie Lomax, em que se dizia “Get back to where you should be”. A letra relacionava-se com os ensinamentos filosóficos de Guru Maharishi, mas a intenção de Get Back era diferente: combater os preconceitos racistas em relação aos imigrantes, principalmente os de origem paquistanesa, preconceitos reforçados com o discurso de Powell. Uma das letras iniciais chegou a incluir a frase “don’t dig no pakistanis, taking all the people jobs” (“não aceitem paquistaneses ficando com todos os empregos”), para além de referências a emigrantes porto riquenhos nos EUA. Contudo, os Beatles acabaram por mudar a letra e o título da canção com receio que a ironia fosse mal interpretada e acabasse por servir propósitos racistas e anti-imigração.

Nas versões editadas em disco, os Beatles mantiveram o refrão “Get Back to where you once belonged”, mas a assertividade da versão original perdeu-se. Tanto que chegou a correr o boato de que era uma mensagem para a namorada de John Lennon, Yoko Ono, de que ela não era bem-vinda entre o grupo.

Nas últimas décadas, os discursos anti-imigração tornaram-se uma das bandeiras da extrema-direita nos países mais desenvolvidos, esquecendo-se os seus defensores da importância dos imigrantes não só para a economia e a sobrevivência do estado social, mas para a transformação cultural. Sem imigrantes não teria havido jazz, nem rock, nem reggae, nem hip-hop, nem outros estilos musicais que nasceram das influências culturais. Sem essa mistura nem sequer o fado teria existido.... Uma política racista de escolha selectiva de imigrantes, como alguns propõem, terá como consequência a estagnação económica, social e cultural. E a música contemporânea, cada vez mais marcada pelos fluxos migratórios, será uma das áreas da produção cultural mais atingidas.»

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