11.12.24

Israel: cultor e vencedor do caos

 


«Sobre o que penso em relação ao que se passa na Síria, escrevi o fundamental na segunda-feira. A simplificação emocional a que assisto, que confunde a natural esperança do martirizado povo sírio perante a queda de um sanguinário ditador com uma “libertação” levada a cabo pelos que ainda há uma semana eram tratados como terroristas, dependentes de uma coligação que tem como único cimento o ódio ao carniceiro caído, confirma o que temia. Mas não é preciso transformar fanáticos religiosos em libertadores para festejar a queda de um carniceiro.

Um dos exemplos que dei no texto anterior para ilustrar as contradições que impedem histórias simples ou esperanças infundadas foi a posição da Turquia e de Israel. Guardo a Turquia e o novo e o miserável sacrifício dos curdos para outro momento. Concentro-me em Israel porque foi o primeiro a revelar, da forma a que Netanyahu nos habituou, o seu absoluto cinismo na relação com esta guerra.

Mal tinha Assad aterrado em Moscovo, já Israel conduzia uma intensa campanha de ataques aéreos em quase todo o território sírio. Mais de 300 operações em apenas 48 horas. Destruição de toda a força aérea síria. Portos militares e outras instalações sem interesse militar destruídas. Muito para além do risco de armamento químico. Esse é o argumento impressivo, para calar o mundo perante a violação recorrente das regras internacionais. Curiosamente, ou nem por isso, as bases militares russas foram poupadas. O objetivo deste ataque é impedir que a Síria seja um Estado com capacidades militares próprias, ficando, por isso, entregue às suas milícias sectárias. Que se mantenha, como o Líbano, um Estado falhado.

No momento em que escrevo ainda não é claro até que parte do território sírio avançaram as forças militares israelitas. Os media internacionais, desmentidos por Israel, diziam que estava a cerca de 25 quilómetros de Damasco. Certo é que, aproveitando o vazio de poder, as forças israelitas ocuparam a zona desmilitarizada, protegida há cinco décadas por forças da ONU, numa violação do acordo de cessar-fogo de 1974, firmado após a Guerra do Yom Kippur. Quem o disse foi o enviado especial da ONU para a Síria, Geir Pedersen, não aceitando as justificação de que se trata de uma medida de segurança.

A ideia de que está a criar uma zona tampão para segurança de Israel é esclarecedora de como vai expandido o seu território. É uma zona tampão para proteger o que já era, supostamente, uma zona tampão. E, de tampão em tampão, lá se vai conquistando território aos vizinhos. É provisório, diz Israel. As ocupações provisórias, por supostas razões de segurança, tendem a tornar-se definitivas no projeto expansionista israelita.

Tudo isto aconteceu perante o silêncio despreocupado do Ocidente, para quem o respeito pela integridade territorial das nações só se aplica à Ucrânia, assim como as acusações de cumplicidade com criminosos só se aplicam à relação de Putin com Assad, não a si próprio, perante a chacina em Gaza. Quem aceite o argumento da defesa preventiva teria de o aceitar para a Rússia, porque a lógica cínica e mentirosa é a que foi usada para o Donbass.

Israel foi fundamental para a vitória dos islamistas descendentes da Al-Qaeda. Não apenas pelo apoio indireto, enfraquecendo o Hezbollah e o Irão, mas por ações mais direcionadas. O objetivo foi impedir que o Irão se estabelecesse no norte, nunca foi a queda de Assad, que não era prevista para próximo, aliás. Pelo contrário, interessava-lhe o prolongamento da guerra, que desmobiliza forças, enfraquece qualquer poder no país e garante que os sírios estão entretidos consigo mesmos. Como Israel bem sabe, o HTS não significa qualquer risco para ele. Tem de segurar o poder interno e partilha um inimigo comum: o Irão. Sendo uma fação mais sectária do que nacionalista, tem nos xiitas, não em Israel, o seu alvo prioritário. Não é por acaso que EUA e Ocidente estão satisfeitos com este desfecho.

A oposições é, neste momento, liderada pelo Hayat Tahrir al-Sham (HTS), descendente do Jabhat al-Nusra, ramo da Al-Qaeda na Síria. Mas conta com o Exército Nacional Sírio, que combateu, aliou-se e pode voltar a combater o HTS. Esta força é composta por uma coligação variada e contraditória, que foi apoiada pela Turquia para controlar os curdos. Junta a Brigada Sultão Suleiman Shah, a Divisão al-Hamza e a Divisão Sultão Murad, alinhadas com Ancara, e a Ahrar al-Sham, que tinha como objetivo "derrubar o regime de Assad" e "estabelecer um estado islâmico governado pela sharia". E há as Forças Democráticas Sírias, uma coligação de combatentes curdos, mas também de árabes e outros grupos étnicos, que contaram com o apoio dos EUA para combater o Estado Islâmico.

Ao deixar fugir o Presidente Assad e ao negociar a transição com o seu primeiro-ministro, o líder do HTS, Al-Jolani, parece totalmente concentrado em segurar o poder que existe, aproveitando a benevolência do Ocidente a inesperada vitória relâmpago. Apesar de não ser provável, bom para o resto do mundo e para a região que, apesar dos riscos, essa transição fosse pacífica. Mas é certo que Israel não o permitirá, porque estabilidade interna dos vizinhos é poder consolidado de possíveis inimigos.

O lema de Israel tem sido o de dividir para reinar. Desgastar o poder dos vizinhos e de quem o possa conquistar. Alimentar o caos e a desordem à sua volta. Promover Estados falhados para ser quem, na região, vai impondo a ordem. Seja no sul do Líbano, no sul da Síria ou em Gaza. E nunca respeitar a integridade territorial dos vizinhos, perante a bonomia do Ocidente.

Israel não está sozinho na interferência direta na guerra da Síria. Tem uma vasta companhia, da Rússia aos EUA, do Qatar e Emirados ao Irão, da Turquia ao Hezbollah. A única coisa que o distingue é a rapidez com que mudou de lado, para ter a certeza que ninguém conquista realmente o poder. Israel não é o único foco de destabilização do Médio Oriente. Mas quem mais vai ganhando com o caos que ajuda a promover.»


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