17.6.24

Já podemos discutir a UE a sério?

 


«Para a generalidade dos comentadores, os campos em disputa nas recentes eleições para o Parlamento Europeu reduziam-se a dois: os pró-União Europeia e os anti-União Europeia (UE). Nunca se percebeu muito bem em que consistia uma coisa e outra, mas não importa: para quê complicar uma coisa que é simples?

Na verdade, lendo os programas e ouvindo os discursos, não é assim tão simples. Todos os principais partidos portugueses têm propostas sobre a UE. Nenhum defende o fim da UE, nem o fim da participação de Portugal no processo de integração. Todos fazem críticas e todos têm ideias sobre como melhorar o que existe, embora defendam coisas diferentes. Para tornar tudo um pouco mais complexo, alguns dos mais ferrenhos adeptos da integração europeia estão entre os mais insatisfeitos com aspectos centrais da UE (como ela é de facto e não como gostariam que fosse).

Isto não é de agora. José Medeiros Ferreira foi um dos maiores impulsionadores da adesão de Portugal à CEE; no último livro que escreveu antes de nos deixar (Não Há Mapa Cor-de-Rosa. A História (Mal)Dita da Integração Europeia), publicado em 2013, mostrava-se alarmado com o estado deplorável em que se encontrava a UE (e com a falta de sentido crítico dos dirigentes políticos portugueses sobre o assunto). O filósofo e professor universitário Viriato Soromenho Marques é um dos intelectuais portugueses que mais se têm destacado pela defesa da união política na Europa; num artigo publicado dois anos mais tarde (Os quatro pecados mortais da Zona Euro), apresentava a moeda única como “uma criatura incompatível com a vida e a prosperidade dos europeus”. Elisa Ferreira, a política portuguesa que mais contribuiu, enquanto eurodeputada e enquanto membro da Comissão Europeia, para atenuar algumas falhas da União Económica e Monetária (UEM), escrevia em 2015, na sequela da crise dos anos anteriores: “A agenda europeia de fundo continua a ser tão urgente como antes, porque as brechas que se tornaram óbvias em 2012 persistem, embora disfarçadas sob capas de sinais de saída do fundo da depressão ou de uma baixa generalizada dos juros.”

Nunca José Medeiros Ferreira, Viriato Soromenho Marques ou Elisa Ferreira deixaram de ser defensores da integração europeia. Isto não lhe toldou a capacidade de perceber as enormes imperfeições da arquitectura institucional da zona euro – e as consequências devastadoras que podem ter para economias como a portuguesa.

Mesmo críticos mais acérrimos, como João Ferreira do Amaral (professor universitário e assessor de dois presidentes da República, Mário Soares e Jorge Sampaio), não deixam de valorizar a lógica cooperativa que esteve nas origens da UE. Em vários dos livros que escreveu contra a moeda única, o economista sublinhava que o euro era, na verdade, o maior inimigo da coesão política entre países europeus.

Para o mundo a preto e branco que nos é servido no comentário político ou se é contra ou a favor da UE. Quem é favor elogia; quem é contra critica; não há espaço para mais. Mas não é bem assim.

Podemos reconhecer o contributo decisivo que a UE teve, desde as suas origens, para trazer a paz a um continente onde a guerra era até aí a norma. Ou a institucionalização dos valores da liberdade, da democracia, dos direitos humanos e da protecção do ambiente. Ou ainda o diálogo entre culturas e a troca de experiências que enriquecem as pessoas e as instituições que neles participam. Reconhecer tudo isto e muito mais não nos impede – nem deve impedir – de assinalar os aspectos menos consensuais da UE realmente existente.

Vale a pena ter presente que a manutenção da paz não foi o único objectivo que levou à criação da CEE em 1957. Os seis países fundadores tinham sido até havia pouco grandes potências económicas e políticas à escala global. Quando a II Guerra Mundial terminou, estavam reduzidos ao estatuto de potências intermédias, com economias destruídas e endividadas. Desde o início que a UE foi um projecto de poder político e económico de um conjunto muito restrito de nações ricas que não se resignam a ter um papel secundário no panorama mundial.

A criação de um mercado unificado de escala continental cumpria todos aqueles propósitos: promovia a paz por via da interdependência económica; criava oportunidades para as grandes empresas dos países mais ricos se tornarem ainda maiores e mais eficientes, tirando partido de economias de escala; e dava maior poder negocial às maiores nações europeias nas relações económicas internacionais.

Com os anos, o mercado interno europeu tornou-se um fim em si mesmo. Foi em nome dele que se criou a moeda única (seria difícil manter as fronteiras comerciais abertas, se houvesse oscilações cambiais entre os países). Foi também em nome dele que se limitou o espaço de intervenção dos Estados nas economias (tal seria considerado concorrência desleal).

Mas há um problema: quando se unificam mercados, não se promove apenas a concorrência entre empresas. Os custos de produção reflectem as escolhas que as sociedades fazem sobre o seu modelo de desenvolvimento, traduzindo-se em salários mínimos, direitos laborais, regras ambientais, impostos, etc. Ou seja, o mercado único põe em competição directa não apenas as empresas europeias, mas também os modelos sociais dos países participantes. Deixando de ter controlo sobre a taxa de câmbio, a emissão de moeda, a taxa de juro e as taxas aduaneiras, os Estados nacionais pouco mais podem fazer do que conter os salários e reduzir os impostos para ganhar competitividade e/ou combater as crises. A UE retirou muito poder aos Estados, mas não lhes tirou a “liberdade” de reduzirem os direitos e os impostos sobre os lucros para resolverem os problemas que enfrentam.

Muitos dos defensores da cooperação entre países e povos europeus percebem bem que a UE que hoje existe conduz, com frequência, à delapidação de direitos laborais, à fragilização do Estado social, à instabilidade financeira e ao aumento das assimetrias entre países e entre grupos sociais. Uns vivem bem com isso, pois acreditam que a constitucionalização da concorrência de todos contra todos tratará prosperidade. Outros empenham-se em corrigir o viés neoliberal da arquitectura da UEM, valorizando as evoluções da última década. Outros ainda são muito cépticos quanto à possibilidade de inverter um rumo que é, de facto, contrário à ideia de Europa social. Entre os últimos há quem (já) não acredite que a UE possa ser muito diferente do que é. Mas até entre esses há quem lute para que seja menos má. As coisas são mesmo mais complicadas do que nos querem fazer crer.»

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