«As novas gerações — porque são sobretudo elas que o fazem — protestam contra o suicídio colectivo que as alterações climáticas representam, e protestam contra as consequências trágicas do que se passa em Gaza, porque ambas merecem a mesma indignação, pela angústia da impotência que provocam e pelo desconforto da injustiça que alimentam. Essa indignação é fácil de perceber, tão fácil de subscrever.
A crise climática e a crise humanitária criam um sentimento de impotência individual e uma raiva de grupo na crítica da hipocrisia de Estados e governos que só se preocupam com elas na aparência dos discursos solenes. Um discurso duplo, ambíguo.
À ansiedade climática associa-se agora uma ansiedade humanitária e um activismo mais combativo. São duas ânsias e atitudes que não se auto-excluem nem sobrepõem. Pelo contrário, as duas complementam-se como visão crítica de um mundo governado por uma classe política encarada como falsa e cínica, capaz de sacrificar o planeta e o respeito pela vida humana, em nome de interesses opostos aos valores que tanto gostam de incluir nos seus discursos sobre a superioridade moral e ética das democracias face às tiranias.
Encontros como as COP e os protocolos de Quioto são boas intenções ultrapassadas pelas segundas intenções das potências dominantes e poluentes, que geram descrença e revolta. Na última COP 28, os activistas do clima defenderam a inclusão da Palestina no debate sobre a justiça climática global e reuniram-se à volta de campanhas como #NoClimateJusticeWithoutHumanRights.
A repetição dos ataques a Gaza, que vitimam a população civil, sem qualquer protecção, e o seu prolongamento indefinido cria uma incomodidade semelhante: como lidar com a impotência e a ansiedade destas imagens? A ecoansiedade ou a ansiedade para com Gaza têm um vírus em comum: a inacção. E a exigência de justiça como obrigação ética.
Esta discrepância entre uma crescente ansiedade, que exige mais acção, e o desinteresse dos Estados, que se confunde com inacção, aprofunda um abismo geracional e político entre quem representa e quem é representado.
Os partidos continuam a ignorar as mudanças sociológicas do eleitorado, particularmente estas inquietudes geracionais, relacionadas com a forma de governar e não com a forma de taxar impostos, e a actuar como se o mundo não estivesse em transformação, à excepção de acharem prioritário passar a mensagem política no TikTok e nos programas televisivos da manhã.
Este desfasamento mina a confiança no sistema de representação. Quem protesta convence-se que o coro de indignação a que pertence é ignorado pela classe política, e que esta promete justiça como uma noção meramente instrumental e utilitária, em negação de qualquer imperativo categórico kantiano, que tanto discurso inflamou sobre a superioridade ocidental.
Felizmente, a direita radical não sabe como lucrar com esse descontentamento, ou porque nega as alterações climáticas ou se está a borrifar para elas, mas sabe lucrar com quem pertence à mesma geração e a quem a inacção não perturba. O sectarismo à esquerda afunila-se numa estratégia de combate, o que faz com que o pluralismo seja uma extravagância dos dois lados da barricada, que não tem como consequência o alargamento da sua base de apoio.
Quer num caso, quer no outro, tem sido a Organização das Nações Unidas, enquanto organização, e não o seu Conselho de Segurança, que mais se tem batido para que o mundo acabe com a sua inércia.
O ano passado foi o mais quente de que há registo e o secretário-geral da ONU não se tem cansado de alertar para o facto de termos passado da era do aquecimento global para a da ebulição global e para a necessidade de uma “bóia de salvação” para a Terra.
Como nunca tinha acontecido em outra guerra, as instituições e funcionários das Nações Unidas e de organizações humanitárias (para não falar nos jornalistas) transformaram-se em alvos militares, como observou ao PÚBLICO o subsecretário-geral da ONU e director executivo da UNOPS, a agência da organização para as Operações. A ninguém nesta guerra é atribuído o estatuto da neutralidade.
António Guterres e Jorge Moreira da Silva não se conformam com a passividade com que assistimos à acelerada destruição do planeta e à inconcebível destruição da mais básica das básicas noções de humanidade. Os dois têm denunciado o que deveria ser denunciado ou sustentado pelas principais democracias dominantes sentadas no Conselho de Segurança e fazem-no com coragem e determinação, em nome de valores que não se transaccionam.
Infelizmente, a tentativa de acção da ONU não tem conseguido romper a inércia dos Estados. A carta das Nações Unidas não pode ser uma letra morta.»
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