13.7.23

A angústia da pequenez

 



«Pouco depois da estreia de “Rabo de Peixe” escrevi um artigo com muito mais reações do que alguma vez esperei. Começava por explicar que não se tratava de uma crítica de televisão. Era sobre a uniformização cultural do mundo de que a Netflix, a plataforma mais diversa na origem das produções e a mais uniforme na sua linguagem, é um excelente exemplo. O objetivo não era debater se a série era “bem feita” – aparentemente era, para o seu objetivo comercial –, mas mostrar como esta globalização não vive da troca cultural, mas da sua estandardização.

Não me espantou a reação à camada superficial do texto, mas estranhei o grau de violência. Sem qualquer intenção, desafinei quando o país “dá cartas lá fora”. Todas as nações precisam de celebrar consensos que permitem continuar a ver-se como comunidades que partilham qualquer coisa para além da coincidência de cada um viver no mesmo território Interessante é perceber qual é o gatilho. E o nosso é quase sempre o mesmo: existir para fora daqui. O enorme entusiasmo com “Rabo de Peixe” também foi alimentado pelas notícias de que a série chegava aos tops da Netflix em vários países e à escala global. E o entusiasmo não era apenas ou sobretudo pelos efeitos económicos para a nossa ignorada “indústria cultural”.

Esta excitação nacional voltou-me à cabeça quando, há um mês, ouvi o discurso do Presidente da República, no 10 de junho: “Não podemos desistir de criar mais riqueza, mais igualdade, mais coesão, distribuindo essa riqueza com mais justiça. Porque só isso nos permite continuar a ter a projeção no mundo, que é o nosso designo nacional. É a nossa vocação de sempre: fazermos pontes, sermos plataforma entre oceanos, continentes, culturas e povos.”

Salto a nossa suposta vocação intercultural, que o imediato crescimento de uma extrema-direita racista num país com pouca imigração e quase sem minorias nacionais se tem encarregado de desafiar e onde a simples fotografia de um cadete de polícia negro provoca uma torrente de comentários racistas. Se temos tanta dificuldade em lidar com a nossa pouca diversidade, imaginem se fizéssemos mesmo “pontes”, sem ser no registo colonial que conhecemos no passado. Deixo estas fantasias para outro momento.

O que me interessa é a hierarquia invertida: o desenvolvimento e a riqueza ao serviço da projeção. Uma inversão evidente quando o Presidente enalteceu a nossa suposta vocação cosmopolita, num discurso que até o Estado Novo experimentou em tempos de aflição: “Outros há, e haverá, que são e serão mais ricos do que nós e mais coesos que nós. Mas com línguas que poucos conhecem, incapazes de compreenderem o mundo, de o tocarem e de o influenciarem mesmo aquele mundo que está mesmo à beira da sua porta. Nós nascemos diferentes. Uma Pátria improvável. Feita a pulso, contra o vento. Muito cedo universal. Muito cedo chamada ou condenada ser mais importante lá fora do que cá dentro. E não queremos nunca cometer o erro de trocar a nossa vocação, que nos fez e faz maiores e diferentes, pela ilusão de que sermos felizes é deixarmos de ser o que nos marcou há séculos.”

A obsessão de uma pequena Nação sem poder mantém por uma suposta vocação externa, que o Presidente, não sei se como crítica, apoio ou mera constatação, trata como o nosso principal traço de identidade e que não é comum a todos os povos, resulta do desconforto que mantemos com a nossa pequenez, que Marcelo verbaliza na perfeição.

As fases do nosso Império foram interrompidas pelo que o historiador Manuel Valentim Alexandre identificou (e desenvolveu da forma que aqui tento resumir e simplificar bastante) como quatro “traumas” que levaram a mudanças estruturais na metrópole. Com Alcácer-Quibir, Portugal perdeu membros de quase todas as famílias nobres, o que correspondeu a uma parte razoável da aristocracia nacional, e dez mil soldados. Desse abalo ficou o legado sebastianista e, segundo Valentim Alexandre, uma narrativa “bipolar” sobre a identidade nacional, "fundada na tensão entre a queda nos abismos e a salvação mirífica".

A independência brasileira, o segundo “trauma”, lança um debate cíclico: se Portugal é viável? Uma ansiedade que alimentou sonhos iberistas ou a ideia de que a resposta poderia estar em África.

Os pequenos territórios dispersos, com mais relação com a América, por via do tráfico de escravos, eram o testemunho da grandeza passada, que foi desafiada pelo ultimato britânico. Mesmo que a exaltação republicana tenha sido despropositada e perdido fôlego, a vaga nacionalista perante a cedência deixou marcas na imagem que tínhamos do nosso lugar no mundo. Este terceiro “trauma” viria a ser o impulso para a ocupação efetiva de territórios africanos, tentando segurar a uma metrópole miserável um império que só prevalecia com a condescendência das grandes potências.

Foram precisos 13 anos de guerra para chegar o derradeiro trauma: a descolonização. O salto quase imediato do centro de um império decadente para a periferia de uma Europa em construção isentou-nos de pensar o nosso desenvolvimento pós-imperial. De como nos podemos cumprir como Nação, deixando de querer ser o que já não somos há tanto tempo. Ficámos bloqueados num complexo de inferioridade e de superioridade – fracos e imperiais, pobres e grandiosos, humilhados e com uma grande história.

Pequenos países mais desenvolvidos, sem passados tão extraordinários, não querem saber o que o mundo pensa deles. Não se candidatam a organizar todos os eventos desportivos, religiosos ou outros. Não vivem para ser vistos. Ao contrário do aristocrata falido, o seu desígnio é garantir uma vida decente aos seus cidadãos sem que isso tenha como objetivo final a projeção nacional. É um objetivo em si mesmo.

Uma sondagem recente, feita pelo ICS/ISCTE para o Expresso, deu-nos um dado interessante sobre os limites do nosso amor pátrio: há mais pessoas a acharem que as nossas decisões devem ser influenciadas pela UE do que pelo parlamento que elegemos. Talvez o desejo de sermos governados por outros seja parente próximo da nossa carência de aprovação externa. Somos uma Nação deprimida que nunca ultrapassou o trauma da grandeza imperial perdida e que nunca conseguiu encontrar na prosperidade do povo satisfação que compensasse a sua pequenez.»

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