25.7.20

A cornucópia da abundância



«Parece que vem aí muito dinheiro. Embora o custo desse dinheiro nestes dias seja muito indiferente a quase todos, dos de cima aos de baixo, esse dinheiro tem um enorme preço: o pouco que já sobrava de Portugal como país independente. O salto qualitativo deste dinheiro é a passagem de Portugal a um Estado dentro da federação europeia. Estado não no sentido de nação mas de “região”, länder, cuja política fiscal já era controlada a partir de Bruxelas e vai agora ter a sua política económica e social igualmente controlada. Essas políticas servem lógicas de “desenvolvimento” que correspondem aos interesses dos países do Norte da Europa e políticas, políticas puras, que deixam de ser controladas pelos eleitores portugueses e muito menos pelo Parlamento português, que é já, em grande parte em tudo o que é importante, uma ficção.

Precisávamos do dinheiro? Claro que sim, mas não a este preço. O princípio de que quem paga manda é uma receita para o desastre, vai alimentar o populismo, tornar indiferente em quem se vota, erodindo a democracia, e, se há lição que se possa tirar da História, é que dá sempre torto mais tarde ou mais cedo. Os novos estrangeirados que nos governam nunca levantarão um dedo, como se viu com a história dos corredores turísticos, em que temos que aceitar que a Espanha ou o Reino Unido possam ser “seguros” e o Algarve ou o Douro não, sendo que Portugal tem instrumentos para defender os seus interesses mas não os usa. Por exemplo, os acordos finais com o Reino Unido dependem dos votos dos países da União Europeia. Uma coisa é ser pequeno e fraco e outra é ser subserviente.

Depois há toda uma outra história com o dinheiro. O dinheiro não vem para um país que subitamente se tornou capaz, com uma varinha mais que mágica, ou que se transformou na Noruega ou na Finlândia. E se há coisa que se pode dizer desde já é que exactamente o dinheiro funciona contra a mudança, tende a solidificar tudo o que está mal. É difícil imaginar-se que uma administração como a portuguesa, fortemente clientelar, que não premeia o mérito e a competência, com largos lençóis de patrocinato e corrupção, sem densidade e know-how para gerir tão importantes quantias, não vai desperdiçar muito do dinheiro que vamos receber. Deitar muito dinheiro em cima de uma estrutura débil não a torna forte e por isso não há que ter muitas ilusões.

Por outro lado, do discurso da “iniciativa liberal”, basta ver as filas de espera que todos os dias a imprensa económica noticia para se perceber como tudo se está organizar nos lóbis privados para o ir lá buscar. Agora toda a gente é “digital” e “verde”. O discurso legitimador destes lóbis é que o Estado vai desperdiçar este dinheiro – o que é verdade –, mas esquece que as últimas décadas da democracia são de uma história de corrupção, aproveitamento de ligações políticas, privatizações obscuras, salamaleques à corte dos políticos. Acresce que o nosso patronato não é particularmente competente, gere mal e considera que as empresas são uma extensão do seu cofre. Isto também não muda por intervenção divina.

Estamos condenados ao atavismo do desperdício e da corrupção? Condenados não estamos, mas há uma alta probabilidade de ser assim e mais vale ser realista do que iludido. Só acreditando em milagres é que deixará de ser assim. Podemos fazer alguma coisa? Pouco, mas alguma coisa é possível. No público e no privado há excepções. O que nos seria mais útil era identificá-las rapidamente e começar por aí, sem nunca esquecer que são excepções. Como o dinheiro é muito pode acontecer que ainda sobre algum para obras de mérito. E alguma probabilidade de que se consiga fazer algumas coisas estruturais do princípio ao fim. Podem vir a custar-nos o triplo do necessário, mas se ficar obra solidamente feita, não é mau.

Podia-se argumentar que tudo isto é um forte argumento para entregar o controlo do uso do dinheiro a estrangeiros, mais do que já existe e vai existir. Foi um dos argumentos dos “frugais”, que acham que podem dar lições de moral ao mundo. Não podem, e seria muito pior. Já que estamos na vergonha de pedir, seria pior ter que ouvir uma frase muito portuguesa dita aos nossos “pobrezinhos” por alguns próceres da caridade: “pegue lá esta esmola mas não gaste em vinho.”

Sem ilusões, mas responsáveis por nós mesmos, vamos esperar que alguma coisa sobre de útil do festival de gastos. Já o que demos em troca de soberania e democracia, isso vai ser muito difícil de recuperar.»

.

2 comments:

nelson anjos disse...


Quando me aprestava a deixar atrás algumas palavras de desacordo com o artigo do Daniel Oliveira (DO), reparei que aqui já estava tudo dito - ou subentendido - pelo Pacheco Pereira (PP). Ou como conclusão direta do que ele escreve. De maneira muito mais clara do que eu seria capaz. Que é como quem diz: uma coisa é a democracia helénica e azul-ideal do DO, e outra é a democracia negra-real do PP.

nelson anjos

JSM SUAVE E NAS TINTAS disse...

Contra desonestidade intelectual não é possível dialogar. Resta o desprezo!
Se há política que ainda só depende dos estados membros é a fiscal!
No dia em que o guito for de borla e quem pagar não mandar estaremos todos em férias talvez em Marte ou muito provavelmente a fazer companhia a thanatos