«Inoculação, postigo, desconfinamento, cerca sanitária, teletrabalho...Estas são apenas algumas das expressões que a covid-19 retirou daquelas páginas dos dicionários que ninguém lê e as tornou mais comuns. Passaram a fazer parte de primeiras páginas dos jornais e a abrir telejornais todos os dias.
Ou seja, a covid-19 deu-lhes visibilidade. Mas mais importante do que as palavras são as pessoas e as histórias que tornam essas palavras importantes. E se há coisa que a covid-19 tem feito é dar visibilidade a problemas crónicos do nosso país.
Quando o país confinou pela primeira vez, retirámos da cave os problemas das famílias que não têm condições para apoiar os filhos na telescola. Ou porque não têm computadores com Internet ou porque têm empregos precários que não são complacentes com os méritos do teletrabalho num contexto pandémico. Transtornos sociais que existem há muito tempo e que, infelizmente, vão perdurar.
Na quinta-feira, António Costa voltou a usar uma dessas expressões: cerca sanitária. Desta vez decretou-a para Odemira. A última vez que a medida foi aplicada em Portugal aconteceu em Rabo de Peixe. O que têm as duas localidades em comum? Pobreza e condições de vida longe do que podemos considerar serem dignas. Diagnósticos há muito conhecidos.
“[É preciso] quebrar essa sobrelotação [de pessoas a viverem no mesmo espaço] porque é um risco enorme para a saúde pública, para além de uma violação gritante dos direitos humanos”, disse Costa para justificar a cerca sanitária imposta às freguesias de São Teotónio e de Longueira/Almograve, no concelho do litoral alentejano.
Quem são essas pessoas? Sobretudo imigrantes que procuram trabalho em Portugal para fazer aquilo que nenhum português aceita fazer, muito menos nas condições que lhes são oferecidas. É um problema novo? Longe disso. Por exemplo, e numa simples pesquisa no site do PÚBLICO, encontramos um texto assinado por Armando Sevinate Pinto, em 2014: Os romenos, a “desumanidade” e o desemprego no Alentejo. No artigo, o político e engenheiro agrónomo, falecido em 2015, já falava dos “estrangeiros explorados”, dos “intermediários que os controlam “, e de “ilegalidades cometidas por algumas empresas intermediárias”.
Problemas que subsistem e que em alguns casos se tornaram mais graves, tal como retratado nas várias reportagens feitas pelo PÚBLICO esta semana.
Rabo de Peixe, separada por quase 1500 km de mar de Odemira, também tem um elefante na sala. Que todos sabem que existe, mas que ninguém resolve: a pobreza e novamente situações em que há mais de 14 pessoas a viver na mesma casa. A vila piscatória da Ribeira Grande também teve uma cerca sanitária no início do ano, fruto da multiplicação de novos casos de covid-19.
E tal como em Odemira, os problemas são mais do que conhecidos. Se o turismo mitigou algumas das limitações económicas daquela que já foi a região mais pobre da Europa, as condições de precariedade social continuam.
Muito dependente da indústria piscatória, e da sorte madrasta do mar, não se pode pescar um peixe com fibra óptica. Nem tão pouco pedir que ele chegue pela Uber Eats. Se em cada 100 pessoas em teletrabalho 48 estão em Lisboa e arredores, esta não é uma opção para a grande maioria das pessoas que vivem nesta vila.
Portugal é um país pequeno, mas muito heterogéneo. Se uma parte do dinheiro da famosa bazuca promete aligeirar os efeitos da pobreza no Porto e em Lisboa, é importante que quem decide não se esqueça daqueles que não são tão visíveis. Há mais casos como Odemira e Rabo de Peixe. Não podemos deixar estas pessoas à espera que apenas um desastre como o que agora experimentamos as tornem visíveis.»
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