Paolo Ucello, "S. Jorge e o Dragão", 1458
«A bispa de Washington deu-nos o melhor exemplo de como responder a Trump. Após uma semana de sorrisinhos e de palmas dadas por quem, um segundo antes e um segundo depois, está a ser insultado, depois de uma avalanche de “adaptação” à força e à violência, entre o entusiasmo escondido e o medo, do alto do púlpito, sabendo que está a falar com um hipócrita religioso, lembrou-lhe o shakespeariano “milk of human kindness”. E ele ficou furioso e, no meio da noite, veio insultar a bispa. A senhora bispa, falando do púlpito dos valores que as Igrejas da Reforma têm sabido defender muito melhor do que a Igreja Católica Apostólica Romana, lembrou-lhe os mais fracos, os que ninguém protege, os que estão com medo e com todas as razões para ter medo.
Por cá, na novilíngua das redes, no X de Elon Musk, Montenegro escreveu a @realDonaldTrump, que eu não sei quem é, dado que pelos vistos há vários “irreais”:
Parabéns, (…), pela tomada de posse como o 47.º Presidente dos Estados Unidos da América! Como amigos, parceiros e aliados, [aqui está uma bandeirinha] e [aqui está outra bandeirinha] partilham valores e interesses sólidos. Reitero o meu empenho em trabalhar em estreita colaboração em prol dos nossos objetivos comuns. Uma parceria transatlântica forte é mais importante do que nunca.
Reparem no detalhe do ponto de exclamação.
Marcelo foi mais moderado e lembrou aqueles que podem ser das primeiras vítimas do pogrom trumpista:
Portugal tem uma longa e profícua relação com os EUA, que continuará a cultivar no interesse dos dois povos, incluindo da extensa comunidade de portugueses e lusodescendentes naquele país e do crescente número de norte-americanos no nosso país. O reforço da relação transatlântica continuará a ser um objetivo comum e uma prioridade para Portugal.
Sim, é uma lição cumprir com os procedimentos institucionais, perante um malcriado narcisista, mas não precisam de mostrar os dentes e fazer sorrisinhos como Obama e outros na cerimónia da posse, ou colocar pontos de exclamação como se fosse muito entusiasmante a eleição.
Trump, através de um qualquer subalterno MAGA no Departamento de Estado (ele está a fazer uma “limpeza” na administração americana, como estava previsto no Projecto 2025, que empalidece o nosso débeis “jobs for the boys”), deve ter mandado agradecer aos espanhóis de segunda, porque ele não sabe nada de Portugal. A sua verdadeira resposta foi permitir que Ventura por lá andasse na investidura, a ver se tirava uma foto com Trump sem o conseguir. E quanto à “relação transatlântica” ou “parceria transatlântica”, ela significa hoje, primeiro que tudo, aquilo que ele não quer, a começar pelo apoio inequívoco à Ucrânia na sua defesa face ao invasor. E estão a falar com o homem que quer destruir a “parceria transatlântica” e que quer que os europeus da NATO gastem mais, mas não é para a sua defesa, é para aumentar as compras de armamento americano.
Só o entusiasmo de terem a seu lado Trump naquilo que eles mesmos combatem – os direitos das mulheres, a comunidade LGBT, os imigrantes que procuram, como os portugueses nos anos 60, melhorar a sua vida, o direito internacional e a Constituição americana – e a falta de coluna para dizer que são dos que se “adaptam” a tudo é que impede os que agora se põem ao seu lado de ver que aquele narcisismo patológico é demasiado perigoso para todos, para o mundo.
Tal como a complacência de alguns dos nossos especialistas de geopolítica que teorizam aquilo que não é racional em Trump, dando-lhe grandes nomes e desenvolvendo agora a teoria do “transaccionável”. No fundo, dizem, Trump o que quer é fazer negócios, dá uma coisa em troca de outra e, assente nisso, é razoável. Convinha saber qual a natureza da “transacção”, o que ele quer que se dê, em troca do que dá, e colocar isso no quadro de valores que é suposto ser o fundamento humanista daquilo a que chamamos “civilização”, sabendo bem como é precário e contraditório, tudo o que vai com o nome: democracia, direitos, liberdade, igualdade, fraternidade. Foi o que lhe lembrou a bispa.
Trump quer acabar com todas as guerras inconvenientes e depois apoiar “até ao fim” Israel no seu massacre de palestinianos, e na conquista de mais território, mas a sua motivação é apenas a glória pelo poder do seu “mando”. E não acaba nada. O que ele pensa fazer no “primeiro dia”, que já vai numa semana, é telefonar a Putin e “mandá-lo” fazer um cessar-fogo, e depois dar-lhe-á em “negociações” o que ele quer. Se não, lá vêm as tarifas. Primeiro, manda, é a “paz pela força”, e, depois, concede aos mais fortes que ele reconhece como seus pares e admira como Putin.
É por isso que os moles são o melhor terreno para estes tempos de violência. Pelo contrário, gente dura não é gente que mimetiza a violência, a agressividade, o radicalismo do “outro” lado. É gente fiel aos princípios que fizeram o pouco de “civilização” que ainda sobra nestes tempos de ascensão do Inferno: humanismo, direitos humanos, compreensão activa pelos que estão a perder o pouco que já tinham, apoio a quem luta pela justiça social, apoio intransigente ao cumprimento dos deveres pelos poderosos que os violam impunemente, denúncia dos abusadores, na sua cara e em tempo real. O que é difícil, porque muitos são anónimos e têm a “coragem” dos anónimos e porque a comunicação social só faz directos para a irrelevância e é mau negócio estar contra os “tempos”.
Sigamos, pois, o melhor exemplo de coragem para estes dias, o da bispa de Washington, Mariann Edgar Budde.»
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