22.6.19

Um grande, grande texto!



«Quando olham para esta fotografia o que veem ?

Eu vejo a minha neta mais nova, que não herdou os olhos castanhos da avó, nem os verdes da mãe, herdou os azuis do pai.

Vejo um bebé lindo, de catálogo, pele clara, cabelo cor de manteiga açoreana, olhos cor de mar das Caraíbas.

E se eu vos disser que esta bebé, que eu amo com todas as forças, como amo a outra minha neta ou as minhas filhas, é uma “migrante”, filha de outra “migrante”, neta de ainda outros migrantes, trineta de “migrantes” .

Desde há muitas gerações que na minha família se emigra: Brasil, Estados Unidos, Angola, Moçambique, Goa, Macau, Guiné-Bissau.

O trisavó das minhas netas partiu para os Estados Unidos, fez lá fortuna no início do século passado e regressou.
Eu aos três anos recebi a etiqueta de “retornada” . Retornada de quê se o meu chão natal foi o chão da Guiné ? Retornada a um país que esqueceu o meu pai, combatente, à sua sorte a sofrer toda a vida de stress pós-traumático ? Os meus tios de Angola, Moçambique, Goa também foram carimbados: “retornados”.

Acabada a Faculdade com pouco mais de vinte anos decidi emigrar para a Alemanha, Portugal nunca foi um país fácil para jovens. A minha irmã partiu para os Estados Unidos para fazer o mestrado, depois o doutoramento, depois os pós-doutoramentos. Cheguei a ter as minhas filhas na Alemanha, com a avó transmontana, estar eu em África, o pai delas na Ásia, a tia nos Estados Unidos.

Regressei a Portugal há um ano e meio, nem sem antes ter viajado e trabalhado em muitos dos infernos deste planeta, não sem ter conhecido o que é a guerra, não sem ter estado sob bombardeamentos. Ensinei refugiados nos campos de refugiados, ouvi-lhes as histórias e os que se permitem ter sonhos: “quero voltar a casa” ( e casa deles não é na Europa). Alguns salvaram objectos, outros apenas a roupa do corpo. Vi mulheres com a mesma roupa vestida que tinham no momento em que foram violadas, a escolha era entre a nudez e os trapos ensanguentados da violação.

Acolhi em casa refugiados sírios, brincaram com as minhas filhas, trabalhei com afegãos, costa-marfinenses, ruandeses, etíopes, bangladeshes, sudaneses. O que eu vi foram seres humanos desejando aquilo que eu mais desejo: paz, um tecto debaixo do qual dormir, comida para dar aos filhos.

Percorri o deserto com muçulmanos, estive no Borneu com muçulmanos, passei semanas inesquecíveis no Brasil com um judeu argentino, fui à missa em Dili, em Juba, em Dhaka, no meio da floresta amazónica. Celebrei a Pachamama com índios na Bolívia.
Toda a minha vida foi feita de migração e contacto com o Outro, entre todas as diferenças encontrei sempre, talvez privilégio meu, a bondade.

Quando se fala em migrantes eu não penso em negro ébano, nem em tez escura, nem numa religião diferente da minha, penso nas minhas filhas, nas minhas netas, na minha família e em mim. Penso que a única coisa que lhes quero ensinar é uma pergunta : “a que distância deixaste o coração?”»

Helena Ferro de Gouveia no Facebook
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