14.8.20

Passividade é cumplicidade



«Há um tema recorrente na discussão sobre a extrema-direita que se pode resumir na frase: “isso é o que eles querem”. Devemos indignar-nos perante cada provocação da extrema-direita? “Não lhes dês palco, isso é o que eles querem”. Devemos fazer de conta que não reparamos nas suas provocações, para não lhes dar palco? “isso é o que eles querem; se não reagires eles aproveitam para ganhar espaço”.

O que está de errado nesta premissa, seja qual for a conclusão, é que passamos a determinar as nossas atitudes e decisões por aquilo que “eles” querem — mesmo que seja sob o pretexto de fazer exatamente o contrário daquilo que “eles” querem. E assim perdemos rasto ao fundamental: o que é que nós queremos? Nós — os defensores da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos — qual é a nossa vontade? Que agenda política queremos que seja a dominante? Que narrativa deve ser a nossa, inadulterada e independente das pressões, caprichos e provocações de adversários e inimigos?

Esta pergunta, por ser a fundamental, deveria ser a de mais fácil resposta para nós. Tem também de ser a que mais imediatamente temos na ponta da língua, sob pena de confundirmos matérias puramente táticas, e como tal mutáveis, com aquilo que para nós tem de ser estratégico ou, mais ainda do que isso, cardinal e imutável.

Felizmente, a resposta é simples: o que os defensores da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos querem é a defesa intransigente da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos. É isso que nos une, ainda antes de sermos de esquerda ou de direita, de cima ou de baixo, de trás ou da frente. É nossa a defesa intransigente das instituições democráticas. É nossa a defesa intransigente dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição. É nossa a defesa intransigente dos direitos humanos, de que ninguém possa ser discriminado por cor de pele, orientação sexual, origem étnica ou opinião. É nossa a defesa intransigente de que a democracia e o Estado de direito se fazem de pessoas concretas, que merecem e têm de viver sem medo, sem insegurança, sem ameaças.

E essa defesa que é nossa e nos deve unir para lá de todas as diferenças, tem de se fazer de forma permanente, assumida e clara. A própria noção de que deveríamos calibrar esta defesa em função dos desejos ou das táticas de outros já é em si mesma uma cedência. Causa por isso espanto que três deputadas da República — Beatriz Gomes Dias, Joacine Katar Moreira e Mariana Mortágua — tenham esta semana sido ameaçadas de morte sem que isso tenha gerado um coro unânime e imediato de condenação, da esquerda à direita. Causa por isso espanto que cidadãos e associações — incluindo a SOS Racismo e o Conselho Português de Refugiados — tenham sido incluídos nessas mesmas ameaças, e coagidas e intimidadas por uma manifestação de mascarados empunhando tochas — sem que tenha havido uma mais vigorosa reação dos órgãos de soberania.

Eu compreendo o que quer dizer o Presidente da República quando apela à “sensatez” na reação, e quando diz ser “tão condenável uma manifestação racista com contornos criminais contra deputados como contra outro cidadão”. Mas não por acaso nos EUA uma ameaça de morte a um congressista é imediatamente crime federal e merece visita dos serviços secretos mesmo que o autor dela seja maluquinho — porque um ataque às pessoas que transitoriamente representam a democracia é um ataque à democracia. Pouco importa em quem votámos, que diferenças ou que afinidades temos, as três deputadas que foram ameaçadas — duas delas mulheres negras, já por muitas outras vezes atacadas com discurso de ódio — são deputadas de nós todos e devemos-lhes que possam exercer o seu mandato em segurança, e em sossego para as suas famílias, que foram também visadas pelas ameaças.

Compreendo também — e espero verdadeiramente que seja o caso — que haja averiguações a fazer discretamente pelas forças policiais e de investigação. Mas também não por acaso, na Alemanha a agência de segurança que investiga este tipo de crimes se chama de Serviço Federal de Defesa da Constituição. Porque é de defesa da Constituição que se trata, contra grupos que desejam subvertê-la. E porque sabemos, nomeadamente através de copiosas e profundas investigações jornalísticas, que há ligações entre a extrema-direita portuguesa e os neo-nazis alemães (que ainda recentemente mataram políticos), e que os elementos que destes grupúsculos fazem parte já tiveram no passado participação em crimes violentos de índole racial e política. As investigações, por discretas que tenham de ser, não podem prescindir de uma sinalização política clara, por parte do governo e dos partidos parlamentares, de que a Constituição é mesmo para defender sem tergiversações contra os cultores da intimidação e da violência política — todos eles, venham de onde vierem, ainda que nos últimos anos em Portugal seja unicamente da extrema-direita que estejamos a falar.

O que é inaceitável não pode ser aceitado. Isso deve ser dito sem nenhuma hesitação, e logo à cabeça. O que é que “eles” querem? A única coisa que quero saber é que não vão conseguir — e ponto final.»

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1 comments:

BELIAL disse...

Cogito ergo sum. Artigo 218.º do Código Civil
(O silêncio como meio declarativo)
"O silêncio vale como declaração negocial, quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção".
é o caso ?
O que sai da esfera legal, deve ser alegado, como tacticismo argumentativo, que ajuizar putativas intenções alheias?
Não faltam factos da vida real, em que silêncio não é cumplicidade.
Tudo mais, não será retórica (política) ?
Ou a liberdade, é limitada, "obrigada" a reagir, como supostamente se deve?