16.3.22

A coragem acordada da “burocrata” Ovsyannikova

 


«Já todos viram o vídeo. Uma produtora e jornalista do Canal 1, televisão estatal e principal fonte de informação para milhões de russos, cometeu a loucura de se exibir ao mundo e ao regime, mostrando, atrás da pivot do telejornal, um cartaz onde se lia: “Não acredite na propaganda. Eles estão a mentir.” E, em inglês, “Russians against the war”. Enquanto isso, gritava, “parem a guerra, não à guerra”. A pivot do telejornal tentou falar mais alto do que ela.

Disse “loucura”, na medida em que a coragem desmedida se aproxima sempre da alguma inconsciência. Mas o ato foi refletido. Marina Ovsyannikova gravou previamente um vídeo, que divulgou através da OVD-Info, em que expressa a sua vergonha por trabalhar numa máquina de propaganda do Kremlin e ter permitido a “zoombificação do povo russo”. Fez uma lista dos seus próprios silêncios, perante os abusos crescentes do opressor. E apelou a que todos os russos se juntassem aos protestos, com aquela vontade que têm os que seguem à frente e esperam, umas vezes com razão e outras sem ela, que uma multidão os acompanhe: “Só nós podemos parar esta loucura. Vá aos protestos. Não tenha medo. Eles não nos podem prender a todos.”

Ovsyannikova foi detida e já está em liberdade, com uma multa menor. Mas arrisca-se a uma pesada pena de prisão. E, quando os holofotes estiverem longe dela, à perseguição mais informal. Desde o início da guerra, quase 15 mil pessoas, incluindo crianças e idosos, foram detidas por participarem nos protestos. Mais de vinte meios de comunicação foram bloqueados pelo regulador ou optaram por encerrar. O Facebook e o Instagram também foram banidos (tratarei disso noutro texto, onde incluirei os nossos próprios abusos).

Pesará, para este gesto destemido de Ovsyannikova, o facto do seu pai ser ucraniano (a mãe é russa). Como temos observado, a comoção dos europeus com esta guerra distingue-se radicalmente da total indiferença que a maioria mostrou com outras em que os seus governos até participaram como invasores e agressores. Também nelas morriam pessoas concretas, com nomes e rostos e filhos, vítimas de crimes concretos. As guerras não são assim tão diferentes umas das outras. Mas a proximidade oferece sensibilidade.

A vergonha de Ovsyannikova será acompanhada pelo dedo acusador de alguns que, tendo nascido em democracia, nunca conheceram o medo e acham que a coragem de agora não apaga o “colaboracionismo” anterior. Nunca tiveram esse medo como normalidade. Nem sequer a ideia de que não há escolha. Muitos experimentam isso na sua vida profissional, com muito menos risco, e respondem para si mesmos – “são as ordens que tenho”, “não sou eu que faço as regras”, “as coisas são como são”, “tenho filhos para alimentar”. Mas não conseguem imaginar o que seja isso como como regra social, política e cultural estável, imposta por um ditador.

Como explicou Hannah Arendt, olhando para alguém com crimes muitíssimo mais sinistros do que os duma produtora e jornalista televisiva, as tiranias não se fazem de monstros, fazem-se de burocratas que se limitam a cumprir, com zelo, as ordens que recebem, alienados de qualquer noção do bem ou do mal. Na realidade, isso até acontece fora das tiranias. Aquilo o gesto de Marina Ovsyannikova não é de arrependimento, como ela própria o descreveu. É de emancipação. É verdade que as pessoas politicamente conscientes nos devem sempre merecer mais respeito, porque nunca desistiram. Mas é quando as outras se libertam das amarras da opressão que determinam o seu dia a dia que as ditaduras podem cair. E é quando pessoas com poder no regime passam por este processo – porque se apercebem da injustiça ou por oportunismo – que os ditadores tremem. Porque se desfaz a obediência burocrática que os sustém.

Por mais injusto que seja, foi Humberto Delgado, vindo convictamente de dentro do regime, e não o PCP, quem mais fez tremer as fundações do salazarismo. Foram os oficiais que faziam a guerra colonial que deram o golpe letal ao Estado Novo. Claro que para alguns acordarem da “zoombificação” de que Marina Ovsyannikova fala é preciso que outros, com uma coragem constante e politicamente consciente, aguentem a resistência nos seus tempos mais solitários. Mas é quando a consciência moral dos insossos funcionários das ditaduras acorda que tudo pode mudar. “Não nos podem prender a todos”, disse Marina. Essa é a certeza de que a maioria precisa para se revoltar. Começa sempre pela coragem de poucos, que vão à frente.»

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