18.8.24

Lisboa prostituída

 


«Há muito que evito ir à Baixa de Lisboa, mas, neste dia, resolvi arriscar. E inevitavelmente encontrei o que receava: na Rua das Portas de Santo Antão, uma multidão de turistas segue um guia que debita para um microfone com alto-falante as suas sábias curiosidades sobre o local. Apenas metade do seu rebanho o ouve, mas todos os outros transeuntes, incluindo os que estão nas esplanadas, são obrigados a suportar o assédio sonoro. No meio da confusão, passam bicicletas de serviços de entrega de comida e trotinetas ziguezagueiam na zona pedonal. Numa esquina, vários “vendedores ambulantes” oferecem abertamente marijuana a quem passa.

Nas outras ruas do famoso Centro Pombalino, nem sombra de lojas com tradição; em vez disso, três lojas de bugigangas, um kebab, um expresso-lab, estúdios de tatuagens e de unhas, bistrôs, lojas de fast-food, barbearias, hotéis, algumas lojas vazias, cadeias de marcas internacionais e, ao longe, no cais, um cruzeiro monstruoso, erguendo-se sobre todos os edifícios.

Atravessar as ruas é impossível, o trânsito insuportável com filas permanentes em que cada segundo carro é um TVDE e, pelo meio, dezenas de tuk-tuks, mais o toque insistente do eléctrico porque os outros veículos estão a bloquear os carris. Afinal, a célebre Lisboa é isto? Sim, infelizmente, actualmente é.

Em cidades como Amesterdão, Veneza, Barcelona ou Dubrovnik há muito se reconheceu que, embora este tipo de turismo de massas e de baixo custo possa aumentar o PIB, ele tem um impacto negativo, tanto no quotidiano dos habitantes locais e na qualidade dos serviços dessas cidades quanto na sua cultura e no seu carácter genuíno.

Já em Lisboa, os decisores políticos, independentemente da sua orientação, continuam a apostar incondicionalmente em “mais turismo”. Por exemplo, a câmara municipal acaba de aprovar mais dois novos hotéis. A nível nacional, o secretário de Estado do Turismo declarou que o Governo espera que, em 2033, o turismo represente 20% do PIB e gere 56 milhões de euros de receitas e 1,2 milhões de empregos. O que nunca é mencionado nestes cálculos milionários são os custos directos e as externalidades dessas receitas, nem quem beneficia dos seus lucros, nem quantos dos empregos são sazonais e precários, dependendo, em muitos casos, de mão-de-obra imigrante.

É incompreensível que a política de turismo em Portugal continue a ser determinada por pessoas de vistas curtas e gananciosas, indiferentes às consequências negativas já bem identificadas e que estão a ser combatidas em várias outras cidades, como Amesterdão e Paris. Até organizações reconhecidas, como a OCDE, já alertaram para os efeitos negativos da sobrecarga turística. Segundo o economista e professor do ISCTE Ricardo Paes Mamede, “alguns dos problemas decorrentes de um crescimento excessivo do turismo são evidentes e bem conhecidos de toda a população. A OCDE alerta para aspectos como as pressões sobre os preços do alojamento (...), sobre as infra-estruturas e os serviços colectivos (traduzindo-se, por exemplo, na sobrelotação dos transportes públicos ou na acumulação de lixo nas zonas mais frequentadas) e sobre o ambiente (aumentando a poluição e pondo em causa a sustentabilidade dos ecossistemas e a biodiversidade)".

Mas voltemos à descaracterização de Lisboa e à sua transformação em Disneylândia. A proliferação das lojas de bugigangas, com 1-2 vendedores asiáticos mas desertas de clientes, é outra chaga aberta no coração da cidade. Que, por trás destas lojas de fachada, existe um negócio totalmente diferente, é óbvio. Só às autoridades competentes, desde a AIMA, à Autoridade de Inspeção do Trabalho (ACT), à Segurança Social (SS) e à AT, é que tudo parece normal. Lojas com localização privilegiada e rendas elevadíssimas, com vários empregados ao balcão, e que não geram receitas significativas são realmente a coisa mais natural do mundo, certo? Porque haveriam as entidades de levar a cabo uma fiscalização concertada?

E que dizer dos produtos dessas “lojas”? Alguns nem sequer têm a indicação obrigatória de origem e, quando têm, são, na maioria dos casos, fabricados na China (ou PRC). Ou seja, artesanato supostamente português, “recordações de Portugal”, feitas por mão-de-obra barata na Ásia, para ser vendido como quinquilharia barata, apesar dos custos de transporte.

Com a uniformização do centro histórico, tudo se torna cada vez mais parecido com o que existe nos países de origem dos turistas, até que estes se comecem a perguntar, afinal, porque vir a Lisboa?

É extremamente triste assistir à alienação das cidades e dos seus centros históricos por governos e autarquias, sem a preocupação de garantirem que as cidades se mantêm habitáveis, primeiro para os seus habitantes e depois para os visitantes.

É verdade que tem razão quem pergunta: mas sabe como era a Baixa de Lisboa há 20 anos? Sem dúvida, ninguém quer voltar a esse tempo de prédios fantasmagoricamente degradados. Mas dar rédea solta a esta evolução, com base no lema “o mercado resolve tudo”, está a tornar as cidades num cenário oco e a desprovê-las de alma, ao expulsar os seus habitantes para as periferias.

Há que aprender com os bons exemplos, e eles existem. É o caso de Viena, onde o desenvolvimento da cidade é feito no interesse dos seus habitantes, com uma visão de longo prazo. Cerca de metade da população vive em habitações sociais ou noutras formas de habitação subsidiadas e não faltam investidores privados que queiram construir estes apartamentos. Não é por acaso que Viena é regularmente classificada como uma das cidades mais habitáveis do mundo. E nem por isso a capital austríaca deixou de ser uma das cidades mais atractivas para turistas.

Basta haver vontade e visão. Infelizmente, as últimas medidas anunciadas pelo Governo apontam para o contrário.»


1 comments:

Carlos disse...

Estive há poucos meses em Merano, no Alto Ádige, no norte de Itália. É uma cidade termal, algo parecida com Sintra. Na vasta zona pedonal com inúmeras lojas de modas, desporto, restaurantes e outras, não havia UMA que tivesse vendedores ou produtos que não fossem da região. Perto da estação de comboios, aí, sim duas vezes por semana há feira com os vendilhões do costume. Decerto a municipalidade exerce a lei no sentido da protecção da imagem da região.