6.12.25

“Portugal é o melhor país do mundo.” Não é

 


«Há duas coisas a crescer nos nossos dias, resultado da inflexão populista de direita radical que domina toda a agenda mediática, influencia a acção governativa e castra a esquerda mole: uma é o nacionalismo de pacotilha, outra a ignorância da “cultura ocidental”, ambas ligadas uma à outra. O mecanismo é hipócrita, num caso vem de se bater no peito por “Portugal” e noutro de se valorizar a identidade cultural do “Ocidente”, contra a “cultura woke”. Em ambos os casos, com uma gigantesca ignorância, que esta inflexão política agrava. É muita coisa para um artigo só, por isso vamos ficar com o pseudonacionalismo, e a cultura “ocidental” fica para depois.

Comecemos pelo nacionalismo, que é no caso actual exactamente igual no discurso, no tempo e no modo, ao do Estado Novo. A frase de que “Portugal é o melhor país do mundo” é falsa. Não é, é um país pobre, em que muitos portugueses vivem na pobreza, com elites sem coragem e cada vez mais ignorantes, distraído dos seus problemas pelo futebol e pelos reality shows, com criminalidade assente na violência doméstica e na corrupção, com uma política do grau zero. Tudo isto não é fruto de cinquenta anos de democracia, bem pelo contrário, o que há de melhor na nossa história recente deve-se ao 25 de Abril, à liberdade, à democracia, ao enorme desenvolvimento que uma fotografia aérea revela melhor do que quaisquer palavras, e que todas as estatísticas mostram.

Mas isso, insisto, não o torna o “melhor país do mundo”. Mas é o meu país, e isso para quem é patriota significa muito. É a minha cultura, a minha língua, a minha história, a minha terra, tudo coisas que o nacionalismo de pacotilha ataca, ignorando a cultura, falando e escrevendo mal o português, falsificando a história e desprezando a terra, a nossa terra. As coisas que fazem a nossa identidade de portugueses são ignoradas, a favor de guerras culturais viciadas à partida. É uma espécie de discurso woke de direita radical, exactamente com os mesmos mecanismos do woke de esquerda.

A nossa história tem muitos pontos negros que, aliás, partilha com a história universal, umas vezes pior e outras melhor. Falar da história não é ocultá-los ou falseá-los, para aparecermos como uma espécie de cavaleiro branco intangível com uma espada numa mão e na outra a cruz. O que estes nacionalistas esquecem é que ao fazer isto diminuem Portugal.

Um dos exemplos recentes é a reacção a uma frase do discurso do Presidente de Angola, João Lourenço, que reproduzo da versão oficial: “São passados 50 anos desde que, como resultado da nossa luta, deixámos para trás 500 anos de colonização, escravatura e humilhação.” O que vou dizer a seguir não legitima nem o emissor nem o regime do MPLA, ambos a desgraça de Angola.

Vamos admitir que se está num debate, e não numa cerimónia oficial. Como é que os nossos nacionalistas responderiam a esta frase? Ela é parcialmente falsa, e essa é a parte mais fácil de responder: não houve 500 anos de escravatura. Dois aspectos são verdadeiros: o da colonização e o da humilhação. Até 1975, Angola foi uma colónia, pesem embora os malabarismos da ditadura, para falar de “províncias ultramarinas” e a escola de Adriano Moreira para legitimar a colonização. Historicamente, o que houve foi “colonização”, e essa parte é irrespondível, como aconteceu com todas os países colonizadores da Europa. E dizer que a colonização portuguesa foi “melhor” do que as outras é também falso, mas isso implica conhecer a história desde o século XIX, das campanhas de “pacificação” à guerra colonial. Acima de tudo não esquecer a guerra colonial.

Depois, a parte da “humilhação” é mais complicada, implica colocarmo-nos do outro lado, coisa que seria facilitada se nos lembrássemos do que se diz do período dos Filipes e do significado do 1.º de Dezembro de 1640. Não se poderia dizer o mesmo da “humilhação” dos portugueses sob domínio espanhol? Podia. Embora João Lourenço não seja a personagem mais autorizada para falar de domínio humilhante, tanto mais que Angola teve outros “donos” depois da independência, cubanos e russos, é perfeitamente legítimo que um angolano patriota se tenha sentido humilhado nos anos da colonização. Sim. Porque o sentimento patriótico não é exclusivo dos portugueses, também, convenhamos, existia em Angola. Um patriota angolano olha para a sua identidade negra, para o imposto de palhota para abrir caminho a trabalhos forçados, aos castigos corporais, para a exploração por estrangeiros dos recursos naturais do seu país, para a miséria na saúde, na escola, na habitação, nas múltiplas violências face aos mais fracos. Não é preciso ir às publicações anticoloniais, basta ler os relatórios militares, por exemplo, na região de Carmona, em Angola, após os massacres da UPA e da reacção dos “fazendeiros”, com outros massacres, aproveitando a situação para explorar a mão-de-obra negra de tal maneira que os militares tiveram de intervir. Há milhares de documentos do lado colonial que denunciam a situação “humilhante” e os abusos dos portugueses.

Este é um exemplo recente, mas há muitos mais. Falar do colonialismo não significa ocultar as violências dos movimentos de libertação, nem a tragédia dos retornados, nem a guerra civil que praticamente destruiu muitas províncias das antigas colónias, nem ocultar a sucessão de execuções e vinganças que, da Guiné a Moçambique, tiveram como alvo não só os colaboradores com os portugueses como os rivais internos. “Eles” não são melhores do que “nós”, no que diz respeito aos direitos humanos, mas nós não somos certamente superiores nas indignações selectivas, até porque muito do que se passou é nossa herança e da guerra colonial, fundamentalmente injusta se quisermos usar estes termos. Toda a apologia nacionalista, que oculte esta responsabilidade, falsifica a história e é apenas manipulação política.»


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